terça-feira, 13 de setembro de 2022

JUNDIAÍ: AS MULHERES DO SÉCULO XVII

 

Manuscritos antigos revelam o papel da mulher do século 17
Entre os suplicantes das “Cartas de Datas” estavam mulheres que requisitaram posse de terras ao poder público para cultivo de subsistência e construção de moradia em Jundiaí, interior de São Paulo
Por Ivanir Ferreira
04/12/2020
Arte: Camila Paim /Jornal da USP
Mais que analisar estruturas textuais e linguísticas e interpretar escritos antigos, a Filologia como uma ciência humana pode nos surpreender e revelar “camadas existentes de uma sociedade” do passado. Foi o que ocorreu em um estudo que fez a transcrição de “Cartas de Datas”, uma espécie de escrituras da terra, de Jundiaí, em meados do século 17. Na época, em meio a pedidos de posse, mulheres viúvas, casadas e solteiras constavam entre as “suplicantas” de extensas áreas, dirigidas ao poder público da cidade. Os manuscritos antigos (1657), que datam do período colonial, estão hoje arquivados no Centro de Memória do município de Jundiaí, interior do Estado de São Paulo, e foram objeto de estudo da pesquisadora Kathlin Carla de Morais, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
As porções de chãos recebidas eram incorporadas ao redor da igreja matriz (onde hoje está situada a Igreja Nossa Senhora dos Desterros), região em que teria acontecido o possível início do povoamento urbano de Jundiaí. “Posteriormente, o proprietário ficava obrigado a fazer doações à Igreja e cuidar da entrada da propriedade, de modo a tornar possível a passagem de pessoas e animais grandes, como cavalos e bois”, conta Kathlin ao Jornal da USP.
Segundo o estudo, esse entrelaçamento de poderes religiosos, políticos e culturais pode ser explicado nesse período pelo fato de as câmaras municipais terem sido os órgãos reguladores de tudo o que acontecia na região. As diretrizes que seguiam eram inspiradas em fontes do sistema judiciário de Portugal, que tratavam sobre as relações do Estado com a Igreja e norteavam os processos civis e comerciais, tendo como base o direito romano e canônico. Este esquema de concessão de terras durou até o século 19 com a Lei de Terras (1850), que passa a usar o modelo de compra e venda para a aquisição de chãos.

Kathlin Morais, doutoranda pela FFLCH-USP – Foto: Lattes
Filhas e netas de pioneiros de Jundiaí



A pesquisadora conta que algumas das solicitações de doações registradas foram feitas por mulheres, o que poderia indicar que já naquela época havia um certo empoderamento feminino. Elas são descritas na documentação como viúvas, casadas, filhas e netas dos primeiros povoadores. “Algumas delas entravam com o pedido de posse por mais de uma vez para expansão da área solicitada inicialmente”, destaca. Foi o caso da dona Agostinha Rodrigues, que foi três vezes à Câmara Municipal peticionar terras e teve todos seus pedidos aprovados. “No século 17, imaginamos a mulher reclusa e submissa, porém, os manuscritos mostram que algumas já estavam na vanguarda da sociedade jundiaiense e cumprindo um papel de liderança e poder na família”, explica.
“No século 17, imaginamos a mulher reclusa e submissa, porém, os manuscritos mostram que algumas já estavam na vanguarda da sociedade jundiaiense e cumprindo um papel de liderança e poder na família.”

Status social


As doações de terra em Jundiaí eram feitas por meio da Câmara, que contava com certa autonomia do ponto de vista jurídico, econômico e político. Pela distribuição das glebas, transferia-se da estrutura política para a social a responsabilidade daquele espaço no que toca sua proteção e cuidado, explica Kathlin. Para o requerente, receber terras era importante, uma vez que passava a ser visto como administrador de uma localidade, o que lhe dava certo status social na região, além de contribuir com a economia de subsistência e moradia.

Estruturas textuais e fenômenos linguísticos
A pesquisa foi orientada pela professora Verena Kewitz, do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da FFLCH. Kathlin analisou escritos de 59 Cartas de Datas, da esfera jurídico-administrativa da Câmara da Vila de Jundiaí, lavradas pelo único escrivão da cidade, o senhor Mathias Machado Castanho. Das investigações filológicas, foram analisadas configurações de macroestruturas textuais de acordo com o modelo de Tradições Discursivas. Explorou-se também fenômenos linguísticos como uso das preposições, redobramento sintático e marcas pessoais do discurso, concordância nominal e verbal, entre outros fenômenos como a quantidade de suplicantes de cada petição e o fato de serem homens ou mulheres.
Sobre o termo “suplicante”, por exemplo, Kathlin encontrou uma variante interessante de designação e diferenciação de gênero. Embora as estruturas textuais dos documentos fossem bastante rígidas, o redator (escrivão) adotava uma variação linguística desse termo: usava-se “suplicantas” para mulheres e “suplicantes“, para homens.

Variação de uma mesma palavra quadra/coadra/quoadra” no mesmo fólio (manuscrito). – Foto: Reprodução/ Dissertação (p.63, fig.18)

Sobre as diferentes grafias de palavras, foram encontradas variações para “coadra”, “quoadra” e “quadra”; “sinquoetta” e “sincoenta”; “coando” e “quando”, dentre outras. De abreviaturas, algumas estavam relacionadas aos nomes próprios (Antonio, Francisco, Ribeiro, Bezerra, San Vissente), aos substantivos e adjetivos (regimentos, majestade, capitania, suplicante, janeiro, câmera, morador, mercê) e às preposições, conjunções e advérbios (que, pela, somentes, claramentes).

Papel de trapos de pano e tinta de noz de galha
É importante lembrar que papel e tinta no século 17 eram artigos raros e caros. Segundo a pesquisadora, o papel utilizado nos manuscritos Cartas de Datas era feito de trapos – ou seja, a matéria-prima era composta de trapos de linho, cânhamo e algodão. Curiosamente, esses trapos (roupas velhas e vestes de parentes falecidos) eram vendidos às fábricas papeleiras para fabricação manual do papel. Esses materiais eram selecionados, limpos, desfibrados e lavados. Posteriormente, eram aquecidos para se tornarem maleáveis, macerados e transformados em pasta. Em seguida, colocados em moldes, formatados em folhas, prensados e levados para secar.
A tinta era do tipo ferrogálica, composta de uma solução aquosa de água, vinho ou vinagre, goma arábica (ligante), sulfato de ferro e noz de galha (planta/carvalho), de onde provinha a cor escura da tinta. Segundo o estudo, tratava-se de uma tinta permanente e de fácil elaboração e por isso utilizada na Europa desde o século 7 até o 19.
A dissertação de mestrado ‘Damos aos suplicantes os chãos que pede’: edição fac-similar e semidiplomática e estudo do manuscrito Cartas de Datas de Jundiaí do século XVII foi defendida em 2018, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No momento, Kathlin continua trabalhando com a documentação de Jundiaí, desta vez do século XVIII, e espera poder encontrar mais dados que contribuam com várias áreas do conhecimento, como Linguística, Demografia, Geografia, História, entre outras.

Mais informações: e-mail kathlin.morais@usp.br, com Kathlin Carla de Morais

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