quarta-feira, 26 de abril de 2023

IGUAPE, LOBISOMENS E ASSOMBRAÇÕES...

 

- Causos caiçaras –
Por; Gastão Ferreira

INTRODUÇÃO
Iguape e suas lendas urbanas
Muitas coisas estranhas aconteceram em Iguape, e quase sempre à noite. O cachorro saiu da mata, e conforme andava pelo acostamento da estrada ele aumentava de tamanho; era um lobisomem? Grandes bolas de luz costumavam seguir os carros que atravessavam a antiga balsa, depois das 22 horas, no Bairro do Mathias; extraterrestres na procura de um contato de terceiro grau?
Os meninos brincavam no campo de futebol Américo Mâncio, de repente se formou um rodamoinho no centro do gramado, uma gargalhada e a bola de futebol some no meio da roda vento; um Saci aprontando? Nenhum moleque ficou para ver o final da história.
Noite alta, a moça vestida de noiva atravessou chorosa o portão do cemitério, e desapareceu; um curioso foi espiar, e o portão estava trancado com um cadeado pelo lado de fora; quem era a jovem? A garota que morreu no dia do casamento?
A mulher com a mala pedia carona na estrada da Barra do Ribeira; o rapaz parou o carro, baixou o vidro e perguntou para onde ela estava indo; a resposta: - “Para o cemitério!”, seu rosto era uma caveira, o moço desmaiou de susto.
O medo dominava na escuridão, poucas pessoas se aventuravam a passar pelo Itaguá depois da meia noite; um homem vestido à moda do século XVIII, assim do nada, aparecia na estradinha de terra e avisava; - “Ninguém rouba o meu ouro! Se tentar, eu mato.”
O motorista cansado parou o caminhão de entrega, um pouco antes do Bairro Subauma, estava quase cochilando quando ouviu um ruído, prestou atenção, o som era igual ao de um cão fatigado, foi olhar pela janela e apareceu uma mão peluda que tentou arranhá-lo; graças ao Bom Jesus, que deu tempo dele ligar o motor e se mandar. O homem-lobo saiu em disparada atrás do carro, mas não alcançou o veículo.
O pescador adormeceu dentro da canoa bem no meio do rio, ao acordar notou um garoto sentado na popa. O menino sorriu, mostrou um grande tronco que vinha em direção ao barco, acenou e desapareceu mergulhando nas águas turvas do Rio Ribeira; era o Negrinho do Rio.
São centenas de causos, todos se perdendo. Precisamos resgatar nossa memória coletiva, nossas lendas urbanas não podem morrer. Iguape tem histórias; pouquíssimas pessoas sabem que o belo Flamboaiã que enfeita a pracinha atrás da Igreja das Neves, foi plantado por um dos últimos lobisomens iguapense de nome Bidan.
Nossos mitos estão morrendo no imaginário popular; há quanto tempo ninguém vê um boitatá? Uma mula sem cabeça? Um cavalo fantasma? Uma Iara, a mãe d’água, cantando a margem do rio? Um mísero fantasma passeando pela Praça da Matriz? Um Saci avisando, “To aqui! To aqui!”. Uma simples assombração pulando o muro do cemitério?
Passou da hora dos saraus contarem os causos antigos, aqueles que foram passados de pais para filhos; igual às histórias dos tesouros enterrados por piratas. O menino é o pai do homem, e lá no futuro, ele contará aos netos e bisnetos, os estranhos causos que ouviu na infância.
Neste livro estão algumas de as nossas lendas urbanas, elas são a parte mais bonita da nossa história.

CAPÍTULOS
I - A mão peluda
II - O tapa
III - O segredo
IV - A Fera
V - Maria Fininha
VI - O casamento do lobisomem
VII - Raul, o lobisomem
VIII - Astério
IX - Um lobisomem no frio
X - A bala de prata
XI - A sombra da sombra
XII - Maria da Lua
XIII - Histórias não contadas
XIV - O último lobisomem da vila
XV - Ziza e o lobisomem
XVI - Plínio

I
A Mão Peluda
A Mão Peluda é uma lenda urbana de origem caiçara, vem dos tempos de dantes; é a história de um garoto selvagem, na verdade ela é uma visagem que agarra pela goela as crianças magrelas, chatas, e que se negam a comer alimentos sólidos e que querem ficar só nos doces e rebuscados.
Diz à lenda que tudo começou quando um menino nu foi encontrado morando numa caverna; ele era uma cria de um espírito das matas com uma índia. O miúdo além de feinho era inteiramente peludo, e a mãe o escondeu no escuro da selva para que seus familiares não soubessem de seus amores com os encantados da floresta.
O curumim estava com seis anos de idade, um verdadeiro bicho do mato, quando sua mãe foi picada por uma jaracuçu, e morreu... O guri começou a roubar comida nos casebres da vizinhança, e sempre furtava do prato das crianças pequenas, pois a molecada nessa idade ainda não sabe se defender.
Enquanto surrupiava o alimento dos filhos dos pobres, nada aconteceu com o peludinho, mas na noite em que tentou roubar a comida do menino Aristides Antunes do Prado Júnior, filho do coronel Aristides Antunes do Prado, senhor de engenhos e mandante da comarca, o caldo entornou...
O moleque Tides, também conhecido como o Tesouro do Papai, a Jóia da Mamãe, e o chato e arrogante da vila, lutou com a Mão Peluda quando esta tentou abocanhar a comida da sua colher; neste exato momento o coronel apareceu e decepou a mão do garoto selvagem.
O que sobrou do corpo do curumim depois que os urubus encontraram o cadáver foram os ossos, ele morreu devido à hemorragia causada pela perda da mão decepada, os índios desconfiaram de que era o garoto da selva porque no corpo faltava a mão direita; eles abriram uma cova no meio do mato, e enterraram os ossos; no dia seguinte, sobre a pequena cruz que marcava a sepultura apareceu a mão, a mão peluda, a mão decepada pelo coronel Aristide Antunes do Prado.
O menino Zébinho Micuim foi sua vítima; magro, puro osso, só queria comer coisa doce; sua avó nhá Belinha cansou de contar a história da Mão Peluda, o guri caia na risada e ainda tirava uma de esperto com a vovó; não deu outra!
Arroz, feijão, carne de tatu, aipim, farinha de mandioca, e o guri se atracou com o pudim; era à hora da janta e nhá Bela estava colocando mais lenha no fogão de barro quando ouviu um grunhido, nem chegava a ser um grito, estava mais para um gemido, um soluço... Correu até a sala de jantar.
Zébinho estava roxo, uma mão peluda, fedida, estava grudada no seu pescoço, e uma voz gutural, rouca, estranha, vinda de lugar nenhum dizia; - “Não quer a comida, é minha!”
Nhá Belinha encostou uma vela na mão peluda; um cheiro de carne queimada, um grito de dor, e a mão soltou a goela do guri, e simplesmente desapareceu... Desde esse dia, a primeira coisa que Zébinho Micuim fazia na hora da janta era esvaziar o prato de alimentos sólidos.
Essa lenda urbana ainda sobrevive, nos cafundós, nas aldeias escondidas nas matas, nas povoações ribeirinhas, nos confins, e quando as crianças se negam a comer arroz, feijão, farinha de mandioca, as mães sempre alertam; - “Coma meu filho, senão a Mão Peluda vem e come, e ainda aperta a tua goela...”
II
O tapa
Cidade antiga de calçadas seculares, e ruas estreitas; Benedita Esmeralda, mais conhecida como Dita Jóia, andava apressada tentando fugir da chuva que se aproximava rapidamente. Era um final de tarde; aquele local tinha má fama, não passava de uma pequena travessa onde coisas estranhas aconteciam...
Foi nela que a donzela Emengarda quase perdeu a donzelice, ela foi perseguida por uma besta fera; agarrada, beijada, e largada no meio da lama, pois a rua era um areão só, e havia chovido, e quando chovia algo bizarro acontecia por ali.
Também foi no mesmo local que o menino Fabinho deu de cara com um Saci; o tempo estava feio, e soprava um Vento Sul. O menino viu se formar um rodamoinho a sua frente, e jogou uma pedra no meio do gira-gira; o rodamoinho estancou de vez, e um Saci apareceu assim do nada, encheu o garoto de pancada e ainda o chamou de pilantra... Fabinho Pilantra nunca mais passou por aquela rua.
O jovem seminarista Pedrinho Cinco que estava de férias na casa de seus avôs também sofreu na pele os horrores do sobrenatural; ele foi cercado por uma nuvem escura, a sua batina de noviço foi arrancada, e o malandrinho que costumava não usar nada por baixo da veste santa estava pelado... Voltou nu para casa e desistiu das pecaminosas paqueras, jamais seria chamado de Pedrinho Seis, pois ficou apenas nas cinco puladas de cerca.
Dita Jóia pensava em tudo isso, e apressava o passo; ouviu alguém chamar o seu nome; - Dita Esmeralda, vem aqui guria, eu tenho um presente para você...
Dita deu uma paradinha, olhou para trás e não havia ninguém na rua, arrepiou-se por inteira; - “Quem me chama?”
- Não interessa! Por que não pegou a pulseira de ouro?
- Que pulseira de ouro?
- A que está na soleira da porta do número 55...
Ouro era uma palavra mágica, pelo ouro as pessoas sempre se vendiam, as pessoas se alugavam, se trocavam, matavam e se perdiam, e Dita Jóia foi espiar se era verdade o que a voz lhe dizia; ali estava uma reluzente pulseira, mal se abaixou para pegá-la e levou o maior tapa na cara, e foi puxada para o interior da casa...
Estava um tanto escuro dentro daquela sala, mesmo assim Dita Jóia percebeu que havia uma branca mão pairando no ar; ela quis gritar, mas a mão novamente a esbofeteou. Moeu a moça na pancada, e vozes de todos os timbres gritavam; - bate mais, Sinhá! Bate mais, Sinhá!
Dita Esmeralda corria pelo cômodo, não conseguia divisar a porta de saída, mas via perfeitamente muitos vultos, todos eles com roupas antigas... Eram os primeiros donos daquela habitação senhoril, casa de muitos escravos, de muito choro e lágrimas; - Então a ladra queria a minha pulseira de ouro! Que a levem para o tronco, e que a presenteiam com quinze chibatadas...
Dita Jóia foi encontrada desmaiada no meio da lama, a chuva havia passado, suas costas estavam lanhadas pelos açoites, eram quinze marcas de chicote... No pulso uma bijuteria de latão; uma velha pulseira, e nela um nome e uma data; Eleonora Mendes Campos/1845.
III
O segredo dos Amorim Fernandes
O coronel Desidério manteve a sua palavra e jamais revelou o segredo familiar, aliás, guardou o mistério por pouco tempo, pois morreu alguns meses após encontrar os dois sobrinhos; ele partiu sem deixar herdeiros, e nhá Damiana, sua mãe, assumiu a chefia da ilustre casa dos Amorim Fernandes.
Andressa e Fabiano, os netos de nhá Damiana tiveram uma infância feliz; moravam num sobrado senhoril com eiras, beiras, e tribeiras. Fabiano passava dias na grande propriedade rural da família, gostava da companhia do negro Gregório, o escravo mais idoso da herdade.
Gregório ultrapassara os cem anos, na sua juventude foi o melhor amigo de Antero Amorim Fernandes, o bisavô de Fabiano; as pessoas estranhavam a amizade entre senhor e escravo, mas o que ninguém sabia é que um terrível segredo unia os dois viventes.
Os adolescentes Antero e Gregório estavam caçando na floresta, foram atraídos pelo assobio de um Saci, “tô aqui”... “tô aqui”! E acabaram se perdendo na mata... Os dois meninos encontraram uma caverna para passarem a noite; era noite de lua cheia, e a caverna era o covil de um lobisomem.
Quando a besta-fera encontrou os dois garotos dentro de sua gruta os atacou imediatamente, os meninos eram valentes e sabiam se defender, eles foram arranhados e mordidos, mas espantaram o imenso cão preto para os cafundós da selva.
Os miúdos voltaram para o sítio, só uma pequena marca restou como lembrança da escaramuça com a fera, um negro tridente bem na altura do coração...
Era noite de lua cheia, e lá estavam os dois pescando na margem do rio, quando a imensa lua saiu por detrás das nuvens, Antero olhou para Gregório e o amigo estava se transformando em um cão, e o mesmo acontecia com ele... Foi a primeira vez que viraram lobisomem.
Quando Antero foi morto por uma bala de prata, foi necessário muito ouro para encobrir o segredo dos Amorim Fernandes, seu filho Eduardo Roberto nasceu com a marca da fera, mas seu neto Desidério não possuía o sinal.
Gregório notou o sinal no peito do menino Fabiano, o garoto acabara de sair do banho no riacho; -“ A marca da fera! Um jovem lobisomem está a caminho. Devo preparar o guri para enfrentar o seu negro fado.”
Fabiano era um bom moço, atencioso, ferrenho defensor da libertação dos escravos, órfão, passava mais tempo na zona rural, pois sua avó Damiana, adorava açoitar escravos, aliás, era o seu passatempo favorito...
Foi devido a este estranho divertimento, flagelar cativos, que Fabiano e sua irmã Andressa descobriram o segredo dos Amorim Fernandes... Vovó Damiana esbofeteou o negro Gregório, assim sem nenhum motivo, bateu por puro deleite, prazer em causar dor... A fera que dormitava dentro do escravo surgiu, e de um só golpe decepou a cabeça da velha sinhá; com o susto tanto Fabiano como Andressa se transformaram de imediato em bestas-feras, e os três juntos uivaram sua revolta para a imensa lua que clareava o pátio da casa rural.
A morte de nhá Damiana foi atribuída ao ataque de uma onça, ela foi enterrada com todas as honras de uma ilustre Amorim Fernandes, o senhor vigário acompanhou o enterro e afirmou que nhá Damiana, alma pura e caridosa, neste momento se encontrava sentada ao lado do Pai, e que Jesus a recebera de braços abertos em seu reino de amor.
Fabiano era o último puro sangue dos Amorim Fernandes, herdeiro da imensa fortuna familiar. Ele alforriou todos os escravos, sua irmã Andressa era a senhora do sobrado senhoril da cidade, e Fabiano o dono das terras de seus antepassados...
Quando Andressa completou dezoito anos apaixonou-se por Astério Rodrigues, um moço muito bem apessoado, exímio violeiro, morador das terras de Itatins; o mancebo carregava um terrível fardo, uma herança secular que se perdia no tempo, mas isso já é outra história...
IV
A fera
Era uma hora da manhã quando Perdido, o cachorro de madrinha Maria Fininha, latiu desesperado frente a nossa casa; naquela época não havia luz elétrica na cidade, e minha mãe acendeu um lampião a querosene: - “Zequinha, meu filho, vá espiar o que aconteceu com a sua dinda...”
- “Mãe, da outra vez em que Perdido nos chamou, uma onça invadiu o galinheiro da dinda Fininha, por que não pede para o pai ver o que aconteceu?”
- “Teu pai e teu tio Anselmo, que veio nos visitar, foram espiar os cercos de tainhas no lagamar, só vão voltar na madrugada; deixa de ser medroso, guri!”
Eu acabara de completar treze anos, um pré-adolescente magrelo, um tanto tímido, um tanto medroso; era noite de lua cheia, alguns pássaros noturnos voavam silenciosos sobre a mata nativa que cercava a nossa rua, nossas casas eram as últimas antes de começar a floresta.
Perdido estava em pânico, e nem sequer balançou o rabo para me receber; ele corria uns dez metros, e depois voltava tremendo, o cachorro se mostrava nitidamente apavorado; algo de muito grave aconteceu com madrinha Maria Fininha... Coitada! Com seus 135 quilos tinha dificuldade de locomoção, era lerda feita uma lesma.
Olha ela ali caída no chão! Olhos abertos, respiração ruidosa; - “É você Zequinha Guaiamu? Graças ao Bom Jesus, uma alma bendita vem me ajudar nesta hora de aflição...”
Eu odiava a alcunha de Guaiamu, o apelido infeliz foi me dado quando um caranguejo guaiamu quase me capou... Coisa de aprendiz de pescador! Passei a maior vergonha, e o povo, a gentalha, os parentes me brindaram com esse apelido vergonhoso; - “Calma madrinha, não se mexa... Está sentindo alguma dor? Quer que eu chame a mamãe?”
- “Nada de incomodar a comadre Dirce Gambá, só me ajuda a levantar; com estes quilinhos a mais tudo fica difícil...”
- “O que aconteceu, dinda? Parece que ocorreu uma grande briga aqui na cozinha, e Perdido estava aterrorizado...”
-“Nem te conto, Zequinha Guaiamu! Uma besta fera invadiu a casa...”
- “Uma besta fera? Um lobisomem, madrinha?”
- “O próprio! Achei que a fera havia desaparecido para sempre, pois não é que ela voltou...”
- “A senhora conhece a besta fera, dinda?”
- “Desde mocinha! Eu era linda, esbelta, uma graça, meu apelido era Dita Sílfide...”
- “Mas o seu nome não é Maria?”
- “Maria Benedita Alves Ribeiro, aquela que já foi a bela Dita Sílfide, a paixão secreta de um lobisomem, e hoje não passa de Maria Fininha, com exatos 135 quilos e duzentos gramas de gordura.”
- “Caramba, madrinha! A senhora foi a musa de um lobisomem, quem diria...”
- “Tenho saudade daquele tempo; mocinha boba, todas as noites de lua cheia ficava trancada no meu quarto, e a besta rodeando a nossa casa, aranhando as paredes, uivando feito cachorro no cio, querendo comer na minha mão...”
- “E a senhora se cagando de medo, dinda?”
- “Nem tanto! Qual donzela não gosta de uma paquera?”
- “E como foi que o romance acabou?”
- “Papai encomendou algumas balas de prata, contou ao povo no boteco do Seu Onofre Pinguim, provavelmente a notícia chegou aos ouvidos do lobisomem e ele desapareceu.”
- “Nossa! Salva pelas balas de prata...”
- “Salva, mas frustrada... Fiquei ansiosa, me descontrolei na alimentação, e me transformei nessa baleia ambulante; de Sílfide à Fininha, eis o resumo de minha triste história.”
- “Mas, e o ataque de hoje, como a senhora sabe que é a mesma besta fera do passado?”
- “Os olhos, o olhar, meu afilhado! Jamais esqueci o brilho daqueles olhos negros... Mesmo assim, hoje quando ele se jogou sobre mim, quando tentou me beijar em vez de me morder, consegui quebrar uma garrafa de vidro na testa da fera.”
- “A senhora foi muito corajosa, dinda! Agora é só ficar esperto e ver quem vai aparecer com um ferimento na testa, e bingo! Vamos desvendar a identidade secreta do lobisomem...”
- “Conto com você, meu afilhado... Fique ligado! E não comente para ninguém o que se passou aqui em casa...”
Voltei para minha casa, papai estava preocupado, tio Anselmo caiu um tombo, ferimento feio, o moço se desacostumara de andar no mato, já faz mais de dez anos que mora na cidade grande; papai o deixou na cabana da mata, e veio buscar os curativos...
Acompanhei papai, realmente tio Anselmo tinha um físico invejável, puro músculos, barriga tanquinho, saradão... Com um corte feio na testa; olhou-me com aqueles olhos negros, olhos brilhantes cheios de amor, eu sabia que era o seu xodó, seu único sobrinho, sangue do seu sangue, ele me abraçou e disse; - “Meu sobrinho, meu herdeiro, que bom que veio ficar com o seu tio.”
Meu coração disparou; olho brilhante, ferimento na testa, raramente vem nos visitar, nunca se hospeda em nossa casa na cidade, prefere ficar na cabana da mata, papai é muito apegado com o meu tio, e eu também; e agora, como fica? Será ele a besta, a fera, o lobisomem apaixonado por Maria Fininha? Aí, tem!
V
Maria Fininha e o lobisomem
Eu estava num beco sem saída; tinha a certeza de que tio Anselmo era o lobisomem que atacara madrinha Maria Fininha, eu sabia que a dinda era apaixonada pela besta fera, mas eu não podia trair a confiança de meu amado tio, a situação era de vera complicada.
Fiquei uma semana na cabana da floresta, só eu e tio Anselmo, ele estava febril devido ao ferimento na testa; que homem bom, coração generoso, um tanto tímido. Uma noite abriu sua alma, contou que tinha um segredo; gelei! Será que ele finalmente me revelaria que era um lobisomem?
Que nada! O que ele contou era um segredo bobinho, ele desde moleque era apaixonado por minha madrinha Maria Benedita, aliás, foi ele quem insistiu com a minha mãe Dirce Gambá para convidar Dita Sílfide para me batizar, e ele e ela foram os meus padrinhos.
A timidez foi a culpada dele jamais se ter declarado à sua musa; devido a um problema que o afligia uma vez por mês, resolveu abandonar a pequena cidade, e tentar esquecer aquele amor impossível... Que tragédia! Jamais deixara de amar Dita Sílfide, mesmo agora que ela era conhecida como Maria Fininha, a louca paixão persistia...
Eu não sabia qual atitude tomar, tio Anselmo permaneceu acamado, o ferimento era realmente bem feio; muitas vezes ficou febril, e chamava por Maria Benedita... Foi difícil para eu tomar uma decisão acertada, mas enfim escolhi o amor; aquele lindo amor entre meus padrinhos não poderia morrer... Fui visitar dinda Fininha.
Cheguei sem rodeios e fui falando; - “Sei quem é o nosso lobisomem, e também sei da grande paixão que ele nutre há muito e muito tempo pela senhora; ele é apaixonado pela dinda desde menino...”
- “Não me diga! Alguém que foi a vida inteira apaixonado por mim... E por que o abestado nunca se declarou?”
- “Timidez, madrinha, timidez! A senhora era tão bela, e ele era um moço comum... Tinha medo de ser recusado, apontado como um jacu, um bicho do mato, um Zé Ninguém...”
- “Meu Deus, Zequinha Guaiamu! Fala logo quem é a figura, tenho medo de que ao saber eu permaneça apaixonada apenas pela besta e não pelo homem... Fala guri!”
- “É o tio Anselmo, madrinha! Pronto, falei!”
- “Anselmo Garnisé, o homem mais lindo da cidade! É muita areia para o meu caminhãozinho...”
- “A senhora está mais para uma jamanta do que para um caminhãozinho, dinda!”
- “Bem que eu notava as caras e bocas do Anselmo, mas ele tinha muitas fãs, todas as filhas da alta sociedade, e eu tão pobre...”
- “Bobagem! Foi ele quem insistiu com a mamãe para lhe convidar para me batizar, assim ficariam mais próximos...”
- “E agora, o que eu faço? Atiro-me em seus braços, digo que conheço o seu negro segredo? Que eu faço? O que eu faço?”
- “Ah, o amor! O tio não sabe que nós sabemos que ele é um lobisomem, e acho que nem deve ficar sabendo... Que tal a senhora dar um pulinho na cabana, chegar chegando para uma visita, e deixar as coisas acontecerem? Hem, hem?”
- “Para um moleque de treze anos você está muito esperto, guri... Vamos que vamos, e sem revelar os segredos!”
Acompanhei madrinha Maria Fininha até a cabana da floresta, entrei sozinho na choupana e disse ao tio Anselmo que ele tinha uma visita... A dinda entrou, os negros olhos de tio Anselmo brilharam na semi-escuridão da cabana...
Ficaram ali os dois olhos nos olhos, com a respiração acelerada, corações palpitando, mãos trêmulas, sorrisos fugidios; tio Anselmo foi o primeiro a recuperar a fala; -“Maria Benedita, Dita Sílfide, há quanto tempo não nos vemos menina!”
- “Dita Sílfide faz tempo que me deixou, sou agora uma mulher com 135 quilos, mais conhecida como Maria Fininho...”
- “Maria Fininho, Dita Sílfide... Não importa, no meu coração só existe a Maria Benedita...”
Saí à francesa, encostei a porta da cabana, chamei o cachorro Perdido e fomos espiar um ninho de sabiás, os filhotes estavam famintos... Ah, o amor! Um dia eu também vou conhecer um amor assim.
VI
O casamento do lobisomem
Meu tio e padrinho Anselmo Garnisé noivou com Maria Benedita Alves Ribeiro também minha dinda e que pesava 135 quilos, conhecida na cidade como Maria Fininha. A noiva sabia que o futuro marido era um lobisomem, e ansiosa aguardava à hora em que ele lhe revelaria o seu segredo tão bem escondido.
Ah, o amor! Maria Fininha com seus 135 quilos caminhava dez quilômetros todos os dias, dentro da mata virgem, só para dizer um oi ao seu amado; nos seis meses de noivado estava com exatos 55 quilos, e todos voltaram a chamá-la de Dita Sílfide.
O casamento foi só no Civil, lobisomem não entra em igreja, e tem pavor de água benta; tio Anselmo alegou que era budista, e que mais tarde casaria em um templo na capital do Estado. Maria Benedita fez de conta que acreditou, e a festança foi maravilhosa; muita carne de caça, refrigerantes naturais, cachaça de alambique, cataia, caipirinha, cervejas.
Dita Sílfide estava no céu; que homem o lobisomem! Uma fera em todos os sentidos. Quando tio Anselmo perguntou se ela não se importava de passarem parte do mês na cabana da floresta, ela concordou de imediato; quanto mais longe das lambisgoias da cidade, melhor.
A vida por vezes é estranha, a gente pensa que sabe das coisas, e que nada! Eu nos meus treze anos bem vividos achava que conhecia muito bem o meu pai e a minha mãe; na verdade nunca desconfiei das saidinhas noturnas de papai, e juro que não tinha reparado que ele sempre desaparecia na lua cheia.
Os recém casados resolveram realizar um estranho ritual nupcial, desta vez em plena mata virgem, algo ligado aos seres que protegem a floresta. Uma cerimônia aos deuses ancestrais, aos elementais, uma sagração de Maria Benedita à Tupã.
O ritual seria realizado exatamente a meia-noite, e chegamos às vinte horas; eu, papai e mamãe... Da família de madrinha Fininha, aliás, ex-fininha, ninguém presente; alguns amigos e amigas de tio Anselmo e de papai, nenhuma criança.
Seu Pedro Parente era o violeiro caiçara; os convidados caíram na folia, e dançaram a catira, o sapateado... Quinze para a meia-noite todos saíram em direção a uma fonte de água cristalina; as mulheres presentes começaram a se despir, os homens só de sungas, tio Anselmo falou; -“Meu afilhado Zequinha Guaiamu fica aqui entre eu e a sua madrinha, e não tenha medo.”
A trilha na mata era encoberta pelas copas das altas árvores, a fonte estava situada numa clareira, quando saímos à céu aberto aquela imensa lua cheia clareava a negra noite; olhei para o alto, o suor cobria o meu rosto, todo o meu corpo transpirava, assustado procurei por meu pai e ele estava se transformando em um grande e peludo cão negro...
A metamorfose era geral, tanto os homens quanto as mulheres estavam em transformação, e nesse momento eu compreendia tudo; eu era sobrinho de lobisomem, filho de um lobisomem, provavelmente neto de uma besta fera... Eu também era um lobisomem!
Olhei para madrinha Maria Benedita, ela era uma negra loba de olhos brilhantes uivando para a lua cheia, tio Anselmo também era um lobo, e ambos se aproximaram da fonte da mata, mamãe Dirce Gambá recolheu em uma cabaça um pouco da límpida água e derramou sobre a cabeça do casal, murmurando algum encantamento, me chamou e realizou o mesmo ritual em minha cabeça; mamãe era uma feiticeira, uma maga, uma curandeira dos povos da floresta...
A matilha saiu em disparada pela mata, corremos e caçamos até o raiar do dia; dormimos todos sob as árvores que rodeiam a cabana. Ao acordar ninguém comentou nada do que acontecera na noite anterior; era esse o segredo dos muitos lobisomens da região... Olhei para madrinha Maria Benedita, ela estava feliz, realizada, e eu sabia que era muito amado por todos os que ali estavam.
Na volta para casa paramos junto a um imenso Jacarandá, papai comentou; - “Foi aqui, bem neste lugar, que eu e seu tio fomos atacados por um lobisomem, e sua mãe nos salvou... Nós éramos muito jovens e estávamos armando uma armadilha noturna para pacas quando ocorreu o ataque...”
Mamãe falou; -“Lembro como se fosse hoje...”
VII
Raul, o lobisomem
O Quilombo do Morro Seco foi na época do Império um dos esconderijos mais seguro para negros fujões; situado na zona rural do município de Iguape, no litoral paulista, a beleza de sua paisagem rural sempre chamou a atenção.
O Porto Grande de Iguape foi famoso em seu tempo, considerado o segundo maior porto negreiro do Brasil, milhares de escravos por ali passaram a caminho das plantações do sul do país.
Da África as guerras tribais forneciam os cativos, em vez de matar os prisioneiros os reis africanos descobriram que vendê-los era muito mais lucrativo, e assim começaram a dizimar tribo após tribo.
As guerras tribais envolviam as grandes famílias da realeza africana, era raro um pé rapado ser feito cativo, a preferência sempre foi pelas princesas, príncipes, feiticeiros, a elite da tribo devastada.
Os pais de Raul não fugiram a regra; a mãe Heliodora uma princesa, e o pai Jancal era filho de um afamado feiticeiro. Conheceram-se na fazenda do coronel Empédocles Rodrigues, o famigerado... Foi amor a primeira vista.
Heliodora era a menina encarregada de servir a sopa na casa grande, Maria Antonia servia as carnes, Izildinha Benedita os vegetais, Equina Regina a sobremesa... Eram doze jovens cativas só na sala de jantar.
Quando o famigerado coronel Empédocles tentou separar o jovem casal, Jancal e Heliodora fugiram e se acoitaram no quilombo do Morro Seco, nem os guardas da corte e os soldados de milícia tinham coragem de adentrar aquelas terras.
Local de mata fechada, vales e altas montanhas, morada das onças pardas, cobras venenosas, lugar onde os filhos de Tupã viviam em segurança; Jancal foi recebido com o devido respeito à um legítimo herdeiro de feiticeiro africano.
Jancal cuidava da saúde física e espiritual dos quilombolas, também tratava das doenças dos animais domésticos; dois anos depois de sua chegada ao Morro Seco, Raul nasceu, e o menino tinha a marca da besta, o sinal que informava ser a criança a reencarnação de um feiticeiro, ou de um lobisomem...
Jancal previu que Raul seria a sua continuação como curandeiro, mas Heliodora sabia que o menino era um legítimo lobisomem, herdara a mesma marca com a qual o rei, pai de Heliodora, também nascera... Um lobisomem de Sangue Real era algo inusitado em terras brasileiras.
Raul aprendeu com facilidade as mandingas de seu pai; era na aparência um legítimo príncipe, herdeiro da nobreza e realeza africana, foi um menino feliz, um adolescente sonhador, um lobisomem feroz, defensor das terras do Morro Seco contra a invasão dos senhores de engenhos.
Centenas de lendas urbanas correm a respeito de Raul, sua história ainda faz parte da memória caiçara; foi ele quem contaminou os irmãos Felipe e Anselmo com a sina da besta.
Raul casou jovem com Elvira Gambá, a morena mais bela do quilombo, uma mistura de cabocla com índia tupi-guarani, e deram o nome de Dirce Gambá à primeira filha, uma linda menina de cor trigueira e lisos cabelos negros vindos da herança indígena de Elvira Gambá.
Quando os adolescentes Felipe e Anselmo foram confundidos com invasores, e o lobisomem os atacou, os garotos foram salvos por Dirce Gambá, a filha do feiticeiro Raul.
A menina Dirce conhecia Felipe, e arrastava uma asinha para o lado do guri, ela passava horas as escondidas assistindo as aventuras dos dois irmãos, e graças a sua ação fulminante, a de encarar a besta fera, os irmãos não foram trucidados, e sim contaminados...
Alguns anos se passaram, Dirce casou com Felipe, e Felipe aprendeu com o sogro Raul a se comportar como um valente e nobre lobisomem; Dirce Gambá estudou as artes mágicas dos xamãs da tribo de sua mãe, era uma filha da floresta, herdeira dos encantos das Iaras dos lagos, de Jacy a prateada lua, era ela a moça que encantava Curupira e adorava Tupã.
Da união da feiticeira Dirce com o mateiro pescador Felipe, nasceu José Gambá, que ficou conhecido como Zequinha Guaiamu, um dos grandes contadores de história do Vale do Ribeira... Mas, estamos entrando em outra história.
VIII
Astério, o filho da floresta
Nhanderuvuçu criou Tupã, que criou Rupave e Sypave, o “pai dos povos” e a “mãe dos povos”, que geraram Marangatu, pai de Kerena que foi raptada pelo demônio Tau e tida como a mãe dos sete monstros lendários da mitologia Tupi-guarani, sendo que seu filho Yacy Yaterê dentre todos eles foi o único a possuir forma humana.
Tupã foi criado nas montanhas da região de Areguá, no Paraguai, único filho de Deus, é o pai dos deuses e dos homens, contam as lendas urbanas que bem antes do homem branco invadir Pindorama, aconteceu uma luta entre Tupã e Anhangá, e Tupã passou um tempo nas montanhas dos Itatins, na Juréia.
Depois da breve passagem de Tupã pelos Itatins, muitas tribos passaram a ver a Juréia como a terra sagrada dos tupis-guaranis, e é neste período que um antepassado de Astério Rodrigues surgiu para a história; na verdade foi uma cunhatai, uma jovem índia que marcou presença na lenda urbana; ela teve um breve enrosco com Yacy Yaterê, o deus protetor dos tesouros escondidos.
Paixão de deuses por mortais nunca deu certo, todos os deuses são volúveis e trocam de amores constantemente, mas a jovem Anacy se deu bem, não entregou a rapadura antes do deus protetor dos tesouros ter lhe mostrado onde o famoso pirata e flibusteiro Barba Dourada enterrara o seu maior butim.
Yacy Yaterê abandonou Anacy grávida; gestante, mas riquíssima, com o tesouro do pirata Barba Dourada a moça comprou o mais belo e viril mancebo português que caçava dotes numa freguesia próxima para ser o pai de seu filho bastardo; o casal foi muito feliz, e tiveram outros filhos.
Trezentos anos depois Astério veio ao mundo, em suas veias corria o sangue de um deus e de uma formosa ex-donzela indígena... Seus antepassados possuíam muitas herdades, o menino foi criado livre, aprendeu a cantar com os pássaros, o manejo da viola caiçara aprendeu com os caboclos da região, ele possuía um dom... Ele enxergava além do comum dos homens.
Quando mocinho costumava perambular sozinho na floresta, foi assim que se enturmou com o Curupira, com o Saci, com a formosa Iara, a senhora das águas doces... Conheceu seu famoso ancestral, o divino Yacy Yaterê de quem ganhou o mapa de um tesouro escondido pelos Incas junto ao Caminho do Peabiru.
Astério Rodrigues se apaixonou ao primeiro olhar pela jovem, bela e rica Andressa Amorim Fernandes; sem problema! Ele era no mínimo umas vinte vezes mais rico do que a donzela, o único senão era que havia algo de muito estranho na família Amorim Fernandes, algo que estava além da sua compreensão.
Ah, o amor! Esse filho sapeca de Afrodite... A festa de noivado de Andressa e Astério causou na cidade, uma senhora festança, teve até foguetes, rojões importados da Europa... A moça foi passar alguns dias nas terras da Juréia, ela se encantou pela beleza da região.
Ao cair da noite sentou-se a margem da lagoa, o lago era formado pelas águas da montanha e ficava entre um circulo de pedras... Uma música vinda do nada, uma voz de ternura sem fim enfeitiçava o ambiente; Andressa notou a bela jovem de longos e pretos cabelos sentada na grande pedra próxima à margem; era uma Iara...
A deusa sussurrou com sua voz de vento; - “Eu sei o teu segredo, Andressa! Conheço Fabiano, o teu irmão, e também conheci Desidério, Damiana, Antero e Gregório... Sei do teu passado e do teu futuro, casarás com Astério e serás feliz, mas isso terá um preço! Estás disposta a pagar?”
Andressa se quedou estática, que mania tinha os deuses de brincar com os sentimentos humanos; ela olhou dentro dos olhos da Iara, eles eram azuis e lembravam as águas puras, os mundos esquecidos, os arcamos mais profundos, consultou o seu coração e perguntou à Senhora das Águas qual o preço da felicidade..., mas isso é outra história.
IX
Um lobisomem no frio
Naquele ano o inverno mostrou-se rigoroso, há muito tempo que a geada não coloria totalmente de branco o telhado das casas; no velho casarão a lareira permanecia acesa dia e noite. Marciléia acordou assustada com o barulho de uma janela batendo ao sabor do vento; - “Provavelmente a jovem e tonta escrava, encarregada de fechar portas e vidraças, de avivar o fogo de hora em hora, de apagar os lampiões, esqueceu de trancar uma janela. Nada que umas boas chibatadas não resolvam.”
Marciléia desceu para o piso inferior, realmente uma janela estava escancarada, e frente à lareira um belo e imenso cão negro ressonava; ela se quedou admirada com a beleza do animal, mas o que a deixou pasma foi a transformação que ocorreu bem a sua frente. As formas do cachorro se alteravam e numa metamorfose fantástica, ele se transformou num lindo jovem; corpo perfeito, atlético, musculoso, em nada parecido com o encanecido coronel Ariovaldo, marido da adolescente Marciléia.
A esposa do coronel Ariovaldo estava só na casa senhoril, apenas a menina cativa, Benedita Maria das Dores, lhe fazia companhia, o esposo e o restante dos escravos estavam no sitio salgando carnes para o inverno. Marciléia se condoeu do rapaz, na verdade não entendia como um homem nu podia ser um cão, a peninha foi tanta que o levou para os seus aposentos íntimos, deu uma roupa do coronel para cobrir a sua nudez, e conversa vai, conversa vem, e algo mais aconteceu...
Foi assim que Marciléia conheceu e se apaixonou por Maílson, o lobisomem; toda a vez que o coronel se ausentava, o rapaz aparecia no casarão, era Benedita Maria das Dores quem o avisava, assim foi combinado entre ela e a sinhá, e se a escrava abrisse o bico, o tronco e o pelourinho se fariam presente na sua vida miserável.
Marciléia vivia feliz, de bem com a vida, sempre risonha, engravidou e vieram gêmeos; filhos reconhecidos pelo ciumento coronel como sangue do seu sangue, mas que eram a cara do pai, o matuto Maílson, de quem o coronel nem sabia da existência.
Um grande e negro cão começou a matar os animais do sítio do coronel. Foi assim, deste modo, que o coronel perdeu a vida; estraçalhado por uma fera. Marciléia contratou o pequeno sitiante Maílson para enfrentar a besta assassina, trabalho que ele levou a cabo; o povo da zona rural ficou feliz, poderiam dormir tranquilos, e quando Maílson se declarou apaixonado por Marciléia, todos entenderam que na verdade ele merecia a linda viúva do coronel Ariovaldo.
Lobisomem demora a envelhecer, Maílson permaneceu jovem por décadas, Marciléia também não demonstrava a idade, com o passar dos anos deixaram a casa senhoril para os filhos e foram viajar conhecer o mundo, provar carnes mais macias, na verdade seguiam a rota do inverno, adoravam o frio.
Belos e ricos, por onde passavam faziam amigos, grandes festas, e nas festas sempre alguém desaparecia para sempre; ah, o sangue jovem! Cheio de energia, o elixir da longa vida. Nada como uma boa taça para esquentar as noites frias frente a uma lareira.
X
A bala de prata
Até uma criança do pré-primário sabe que um lobisomem só pode ser abatido por uma bala de prata, é óbvio que também pode ser decapitado, ou, serrado ao meio por uma moto-serra, mas quem teria coragem suficiente para chegar tão perto da besta fera?
O menino Heriberto, não sabia; ele acreditava que todas as pessoas eram puras, que o mal era uma invenção de gente invejosa, que não existia alguém capaz de se apossar de um bem público, faturar uma obra do governo, cobrar propina, e horror dos horrores, serem desonestos.
Pobre e ingênuo Heriberto pagou muito caro a sua falta de semancol; numa sexta-feira de lua cheia, sua avó, Dona Frozia, pediu ao neto que desse um pulinho na bodega de seu Onofre e comprasse duas velas, pois acabara a querosene do lampião da cozinha, e ela não poderia terminar a janta sem uma luz para alumiar o ambiente.
Bertinho foi correndo atender ao pedido da vovó, pois era um garoto muito prestativo; na volta para casa estranhou ao ver um imenso cão negro ganindo de dor, uma esquina antes da casa de vovó Frozia. Nunca tinha visto um cachorro tão grande, ficou penalizado e chegou mais perto do animal, e este mostrou ao guri a pata ferida por uma farpa de madeira; parecia pedir que o moleque a retirasse.
Sem medo, o miúdo retirou a causa da dor, o cão soltou um grunhido feliz, olhou Heriberto nos olhos e escafedeu-se no mundo; o tempo passou, Bertinho cresceu...
Quando o lobisomem atacou a linda e graciosa Almira, os habitantes da vila pediram às autoridades que dessem um basta as investidas da besta. O senhor Alcaide ordenou ao mancebo Heriberto que encontrasse um meio de exterminar a fera; o moço Heriberto consultou o senhor vigário, e o padre sabedor de muitos mistérios, lhe disse que apenas uma bala de prata poderia abater um lobisomem, aliás, possuía duas delas, herança do padre Gregório, aquele servo do Senhor que numa noite de lua cheia, ao voltar da zona rural, foi atacado e morto por um lobisomem, mas esta é outra história.
Heriberto munido das balas de prata, na primeira lua cheia, saiu à procura do homem lobo. Com tantos ataques da fera, todas as casas fechavam suas portas ao anoitecer, e as pessoas trancadas nem sequer espiavam pelas janelas.
Berto, de arma em punho, foi golpeado pela besta fera, e o revólver escapuliu de sua mão; as negras garras do lobisomem apertavam a sua garganta, seu fim se aproximava de uma morte horrível e maldita, ter a vida roubada por um ser demoníaco, em pensamento entregou sua alma ao Criador, e pediu ao Bom Jesus, que se possível o ajudasse nessa hora tão desnaturada...
O lobisomem apertava a goela do moço com uma das garras, e quando levantou a outra pata para o golpe final, olhou Heriberto nos olhos, e um raio de reconhecimento brilhou nos negros olhos da besta... Baixou a peluda pata, afrouxou o aperto da garganta, uivou para a lua, e saiu em disparada...
Heriberto, o ingênuo, descobriu naquele momento que o lobisomem era o mesmo cão negro de sua infância, aquele imenso cachorro que há muito tempo estava com uma farpa na pata, e que ele, o menino Bertinho, havia ajudado, e entendeu o motivo pelo qual a besta fera não o matou, pois até mesmo um lobisomem pode ser grato por um favor recebido.
Heriberto contou a sua história, não mencionou a parte da farpa na patinha, apenas relatou sua súplica ao Bom Jesus, e foi assim que a lenda urbana atribui mais um milagre ao nosso santo protetor.
XI
A sombra da sombra
Tilde, desde a infância conviveu com a situação; a casa era a última da rua sem saída, e se localizava na entrada da mata, no Canto do Morro, um bairro situado no sopé da montanha, na cidade de Iguape/SP. Durante o dia bandos de diversas espécies de pássaros visitavam as árvores frutíferas, alguns lagartos fingiam dormir, mas na verdade estavam atentos em busca de cobras venenosas. Uma vez uma onça ficou horas parada junto a cerca de bambus, espiando as galinhas.
Foi nhá Chica, a avó materna de Matilde, quem chamou a atenção da menina; -“Tilde! Depois do escurecer nunca passe da cerquinha de bambus, mesmo que as vozes insistam...”
- “Por que vovó? Eu não tenho medo das vozes, são elas que cantam para eu adormecer...”
- “Meu Bom Jesus! Elas estão cada vez mais próximas de nós. Quando eu era pequena, lembro que elas ficavam de longe e aparentemente nos ignoravam...”
- “Vovó Chica, o que são elas?”
- “São apenas sombras, minha neta! Um dia foram gente como a gente, pessoas que se perderam na montanha e foram devoradas por feras, sombras de sombras que partiram e não encontraram o caminho para um outro mundo...”
- “Se são apenas sombras, por que não posso passar da cerquinha de bambus, vovó?”
- “Porque elas te levarão para o fundo da mata, e você, minha netinha, jamais encontrará o caminho de volta...”
- “Elas parecem tão inocentes! No escuro posso ver seus olhos vermelhos, são dezenas de olhos piscando e chamando o meu nome. Tem uma com voz de menino, diz se chamar Afonso, e sempre me convida para brincar...”
- “Afonso? Fonsim, meu filho de cinco anos, que numa noite passou além da cerca e nunca mais foi encontrado. Tilde, você ouve a voz de Fonsim?”
- “Quase todas as noites, vovó! Ele conta que é escuro o lugar aonde vive, e que sente saudade do cavalo Amadeu...”
- “Meu Deus! É realmente o espírito de Fonsim, Amadeu era o nome do cavalinho de madeira com o qual galopava pelo quintal há quarenta anos passado...”
Tilde nunca passou da cerquinha de bambus, aprendeu muito com as sombras; elas contavam histórias, histórias de coisas que não existem mais. Elas sabiam da raça de pequenos homens que pescavam neste lagamar, os formadores de sambaquis; elas falavam dos índios que habitavam a grande ilha, próxima a cidade. Sabiam histórias de piratas, de donzelas apaixonadas, dos negros fugidos que se escondiam na mata...
As sombras existiam desde sempre, pareciam invisíveis, mas na escuridão podiam ser divisadas, pois eram um pouco mais claras que a negritude da noite; eram tidas como visagens, assombração, e temidas através dos tempos.
Matilde sentia saudade de vovó Chica; quando vovó completou noventa anos, chamou a neta e lhe disse; - “Minha neta, hoje à noite vou atravessar a cerca de bambus...”
- “Não faça isso, vovó! A senhora sabe muito bem que jamais voltará das sombras.”
- “Já vivi o suficiente, Tilde! Hora de ir morar com Fonsim; todos os dias eu penso no meu menino que se foi... Não se entristeça criança! Quando quiser conversar, é só me chamar junto à cerca; fique com Deus, querida!”
E foi assim que vovó Chica partiu há mais de oitenta anos, e hoje Matilde completou noventa e cinco anos, fizeram uma grande festa, ela já é bisavó, acredita que aproveitou muito bem a vida; passeou bastante, chorou, amou, fez fofocas, se divertiu, sofreu seu quinhão de dores, e chegou a hora de conhecer o outro lado...
Foi à última vez que Sirlei viu a bisa Tilde, foi bem no momento em que ela pulou a cerca e simplesmente ficou invisível; Sirlei também ouve as vozes que habitam as sombras, e sabe que daqui há muitos e muitos anos, ela reencontrará a bisa Tilde, e o restante de seus antepassados naquele mundo que existe além da cerca de bambus.
XII
Maria da Lua, a mula-sem-cabeça
Conta a lenda urbana que Maria da Lua morava num rancho de sapé para as bandas da Ponte do Mathias; morena, esbelta, corpo perfeito, de riso fácil, gentil, generosa, caiçara da gema. Órfã de um pequeno sitiante, criada pela mãe, Dona Minervina Santos, mulher que desde a infância tinha estranhas crises de múltiplas identidades; a mãe simplesmente se transformava em outra pessoa, inclusive com nome e sobrenome. Todos afirmavam que Dona Vina era aluada, eis o porquê do apelido da bela Maria, da Lua por parte da genitora.
A beleza exótica de Maria da Lua chamava a atenção; foi assediada por muitos romeiros. Os caminhantes eram pessoas que vinham de longe pagar promessa no santuário da cidade, e que paravam no casebre para pedir água. Dona Vina, a louca, botava todos para correr, até o dia em que o jovem padre Edenardo bateu a sua porta.
Padre Nardo era um poeta, sua musa era Nossa Senhora, mas assim que botou os olhos em Maria da Lua, a santa passou a ter o rosto de da Lua, e o safadinho fez mil versinhos para a inspiradora de seus novos poemas, antes tão castos e agora tão eróticos.
Padre Edenardo engambelou Dona Minervina, dizia acreditar piamente nas mentiras que cada personagem incorporada por Dona Vina lhe confidenciava em confissão, e foi assim que realizou seus desejos carnais; possuir a ingênua Maria da Lua.
Ledo engano! Maria da Lua há muito tempo perdera a ingenuidade e outras coisas, e todos os romeiros sabiam disso, mas quem se apaixonou de verdade foi o padre, e da Lua soube tirar partido da situação; muita prataria e objetos de ouro desapareceram misteriosamente das velhas igrejas da cidade. O padre Euzébio desconfiou de padre Edenardo e acabou descobrindo o romance pecaminoso; estava se preparando para contar ao senhor Bispo quando conheceu pessoalmente Maria da Lua, e foi paixão fulminante, arrebatadora, mortal, e só não largou a batina porque não tinha como sobreviver fora da vida religiosa, e também porque da Lua rogou que não o fizesse, pois caso abandonasse a batina, ela fatalmente se transformaria numa mula-sem-cabeça.
Quem contou sobre o enrosco de padre Euzébio com Maria da Lua, foi a menina Shirley Campos, uma das personagens vividas por Dona Minervina; a coisa foi tão feia que padre Nardo tirou a própria vida, ele se enforcou junto ao muro de pedra existente nas proximidades da ponte do Mathias, e virou visagem por muito e muito tempo.
Quando toda essa sórdida história veio à tona, padre Euzébio se jogou do campanário, e nesta noite fatídica, Maria da Lua se transformou pela primeira vez em uma mula-sem-cabeça; correu soltando fogo pelo pescoço desde a ponte do Mathias até o centro da cidade. Relinchou sua dor, mostrou o seu desespero em torno da Praça da Matriz, e partiu em disparada para o seu rancho.
Foram treze luas cheias, foram treze vezes em que a mula-sem-cabeça assustou os pacatos moradores da cidade. Na época em que tais fatos ocorreram ninguém ficou sabendo da identidade da mula. Quando o jovem e fogoso padre Damião chegou à cidade, a mula parou de assombrar os viventes, Maria da Lua voltou a sorrir e Dona Minervina se apaixonou por um lobisomem, mas já estamos em outra história...
XIII
Histórias não contadas
Neste mundo tudo morre, tudo passa, e tudo viaja para o esquecimento; são os contadores de causos, os escritores, os menestréis e poetas que levam os personagens para a eternidade; se não fosse Homero jamais saberíamos de Aquiles, o maior de todos os guerreiros, ou de Heitor, o domador de cavalos, príncipe de Tróia. Todas as histórias podem ser contadas, até mesmo as histórias proibidas; na Princesa do Litoral tentaram por muitos e muitos anos esconder o fato de que o coronel Isidoro Paixão, depois de defunto, continuou tomando conta do seu ouro e de suas propriedades.
Dez anos após a sua morte, numa noite de lua cheia, a escrava Emengarda, a negrinha encarregada de despejar os urinóis pela janela lateral do palacete, segundo contou aos prantos, viu o coronel na calçada; - “Juro pelo Bom Jesus! Era ele sinhá, de susto deixei cair o penico bem em cima da figura do coroné, e ele me oiô de cara zangada, os zóio vermeio feito dois tição em brasa.”, “Garda, Garda, te esconjuro excomungada! Se contar para alguém te vendo por troco de manjuba ao primeiro mascate que aparecer na cidade; boca de siri!”
Quando a donzela Lorelaine, veio do sitio para passar a Festa do Bom Jesus, isto no ano de 1875, no palacete de seu padrinho já falecido, conheceu o mancebo Eustáquio da Conceição Negrão Silva. Rapaz bem apessoado, metido a cantador, seresteiro e mulherengo; para a mocinha, menina inexperiente, bastou três piscadas de olhos do jovem e estava perdida de amores.
A viúva do coronel, madrinha de Lorelaine, sabia da má fama do moço Eustáquio, e proibiu o namoro; a garota estava pronta para fugir, e tentou comprar a ajuda da escrava Emengarda. A serva não sabia o que fazer; se ajudasse a sinhazinha, e a sinhá velha descobrisse, com certeza seria açoitada até a morte. Se não ajudasse, pior ainda, sinhazinha podia pedir a escrava de presente e lavá-la para a zona rural, e por lá o bicho pegava.
Era caso de vida ou morte para Emengarda, e ela perdeu o medo e recorreu ao fantasma do coronel, pois em todas as luas cheias ela notava a visagem, algumas vezes até mesmo dentro de casa; prometeu a assombração que nunca mais despejaria os penicos pelas janelas do palacete. Uma promessa boba, mas a escrava sabia da brabeza do coronel sempre que era atingido com o conteúdo do vaso noturno.
Na noite da fuga, todos dormiam no palacete, menos Lorelaine e Emengarda, perto da meia-noite a donzela saiu do quarto sorrateiramente; portava uma sacola com algumas mudas de roupa, jogou uma escada de tecido pela sacada e sorriu para Eustáquio que estava na calçada, só na espera; na metade da descida da escada, Lorelaine ouviu um grito apavorante, e viu a figura do padrinho já falecido baixar a bengala na cabeça de Eustáquio, muda de susto e medo, desmaiou e caiu da escada... Com a gritaria, na calada da noite, a vizinhança ocorreu e a rapariga ficou em maus lençóis.
Rico não é fácil, e milionário é pior ainda; Lorelaine comprou a peso de ouro o silêncio de Emengarda, aliás, deu alforria a negra após a escrava jurar que um homem mascarado tentou raptar a sinhazinha para pedir um futuro resgate, mas na hora do vamos ver, um vulto surgiu na rua e impediu a consumação do plano diabólico do desconhecido, que se escafedeu na escuridão. Eustáquio embarcou no primeiro navio para Santos e nunca mais voltou à Princesa.
Por muitos anos o quase rapto de Lorelaine fez parte das lendas urbanas, as lendas contavam da valente donzela que lutou bravamente contra um pirata que queria raptá-la, um exemplo para as meninas mimadas e sonhadoras que ficavam nas janelas, suspirando por um príncipe. A história não contada foi a presença do coronel Isidoro Paixão, a visagem que até os dias atuais vez por outra aparece numa das janelas do velho palacete.
XIV
O último lobisomem da vila
Lycaon, rei da Arcádia, era filho do herói grego Pelasgo e de Melibea, que era filha do deus Oceano; excessivamente religioso, tinha o costume de sacrificar à Zeus todo o visitante que aparecia em seu reino. O que ele não sabia era que estava infringindo a mais sagrada das leis, a lei da hospitalidade. Zeus foi conferir o que estava acontecendo, e assim, acabou convidado para um banquete onde lhe foi servido carne humana, e então, o pai dos deuses e dos homens, furioso, transformou Lycaon em lobo, o primeiro lobisomem da Terra.
Bem, na verdade este fato ocorreu no nascedouro da raça dos homens, há milhares de anos; dizem que alguém só pode virar lobisomem de duas maneiras, por maldição ou por contado sanguíneo. Um homem teria de ser amaldiçoado por um deus ancestral, e até aonde se sabe, o único deus antigo que sobreviveu é Tupã, então é mais fácil ser mordido, arranhado, ferido por outro lobisomem, do que ser amaldiçoado.
Jão era menino valente, ladrão de palmito, caçador de animais silvestres, passarinheiro, politicamente incorreto. Com estas práticas caiçaras, ofendeu Tupã, aliás, ele Jão nem sabia que Tupã existia, mas mesmo assim foi amaldiçoado; coisa rara, pois Tupã sempre teve a fama de ser bondoso, mas naquele dia estava de ovo virado e resolveu transformar o menino Jão em uma jaguatirica; - “Não, meu pai! Jaguatirica, não.”, falou o Curupira, “transforma o guri num lobo!”, “Num lobo! Nem existe lobo em Pindorama.”, disse Tupã. “Pai de Todos, se transformá-lo em jaguatirica, o moleque será um jaguatiromem, mas se transformar em lobo, será um lobisomem...”, ponderou o Curupira. “Tem razão, meu filho de pés virados, pega melhor lobisomem; pois que seja, será um lobo sempre que for lua cheia.”, determinou Tupã.
Para Jão foi ótimo virar lobisomem, quando era lua cheia saía para caçar, e nunca faltou carne em sua despensa; era carne de paca, capivara, jacaré, tatu, cutia não, tateto, jacu, anta e bugio. As meninas da vila achavam que Jão era um excelente partido, mas seu grande amor sempre foi à menina Cotinha, e foi com ela que ele se casou.
Vieram os filhos, um menino e uma menina; o menino de nome Leôncio e a menina Laira Cristina, nome de uma heroína do filme “A Princesa do Litoral e os Piratas da Barra”, que Dona Cotinha achou linda e virtuosa. Laira Cristina estudou, fez veterinária e tem consultório na cidade, raras vezes visita os pais no sítio, ela tem dois filhos que adoram o tio e os avós que moram no meio do mato; Laira casou com um funcionário de carreira da municipalidade, um fiscal de obras, e que leva cada carreira toda a vez que tenta multar alguém... Só por Deus!
Jão e Leôncio nem parece pai e filho, pois Jão estacionou a aparência física nos vinte e poucos anos; quando Leôncio fez dezoito anos, Jão tomou a decisão de transformá-lo em lobisomem. Estava cansado de sair sozinho para caçar em noites de lua cheia, necessitava de um companheiro de aventuras, queria dividir com alguém os mistérios das matas, o silêncio das florestas, o cantar dos pássaros, e ninguém melhor do que um filho para compartilhar do seu segredo.
Não foi difícil convencer Leôncio à participar da caçada, desde criança, o sonho do menino foi em se juntar ao pai no escuro da mata, esperar na ceva o tateto e a paca. Aquela noite foi fatal; lua cheia brilhando no céu, Leôncio sozinho na floresta, esperando o pai que fora até a margem do rio... Um estalo seco, olhos vermelhos na escuridão, um uivo de lobo, um salto no vazio e uma mordida certeira... Leôncio será conhecido como o último lobisomem da vila; o causo está apenas começando!
XV
Ziza e o lobisomem
Tucum é um bairro rural do município de Iguape, famoso por suas mutucas, lavouras de arroz, bandos de gaviões, e as gordas traíras do Rio Pequeno. Após as Terras de Santa Bárbara e suas piscinas, quase no encontro do Rio Pequeno com o Rio de Una numa tapera de pau a pique sobrevive Dona Ziza, uma benzedeira das antigas, conhecedora de muitas mandingas e garrafadas.
Ziza na juventude foi de uma beleza ímpar, só não casou jovem porque ficou mal afamada; segundo a afiada língua do povo, a menina moça teve um enrosco um caso, um namorico com um lobisomem... Na verdade ela não teve nenhuma culpa pela paixonite da besta-fera, foi o lobisomem quem caiu de amores pela donzela, e azarou a vida da mocinha sonhadora para sempre.
Tudo começou quando a garota Ziza Mutuca, filha de Dita Mutuca e neta de Maria Mutuca encontrou com Mané Micuim na margem do Rio Pequeno; o rapaz presenteou a rapariga com três bagres que acabara de pescar. Na zona rural quando um moço oferece um presente para uma moça é sinal de interesse, pode ser qualquer coisa; uma fruta, uma caça, um peixe, um passarinho, coisas de sitiantes e de gente pobre que não pode presentear a paquera com um perfume francês, um colar de diamantes, um fim de semana em Cananéia.
Mal o rapaz ofereceu o seu peixe, um lobisomem o atacou, Mané Micuim pulou na água e se salvou, pois todo mundo sabe que lobisomem tem medo de água... Ziza ficou a mercê da besta, o bicho ficou rodeando a donzela, fungou no seu cangote, lambeu as suas pernas, derrubou a moça no chão... Ganiu baixinho, uivou e se escafedeu na mata, pois o pai de Ziza Mutuca estava chegando ao pedaço.
O safado do Mané Micuim, que não se preocupou em defender a donzela, contou na aldeia a história do lobisomem tarado, e a fama da garota foi para o brejo; marmita de besta fera, queridinha do lobo, chapeuzinho vermelho foram alguns dos apelidos bobinhos que só sitiantes acham lindos de colocar em uma formosa menina do mato.
A vida de Ziza virou um inferno, todos os rapazes que se mostravam interessados em algo mais com a moça eram atacados pelo lobisomem, e assim ninguém queria namorar a donzela. O lobisomem só aparecia durante a lua cheia; rondava a casa de Ziza, arranhava a porta da habitação, uivava, gania, rolava na terra, choramingava até que a moça aparecesse na janela, só então partia feliz...
O amor é algo misterioso, imponderável, incompreensível; quando a bela Ziza Mutuca aceitou se casar com Zé do Mato, um coitado que morava num casebre à beira-rio, sem um porco para chamar de seu, um ladrão de palmito, um mateiro que vivia da caça de animais silvestres, ninguém percebeu que o pobre Zé do Mato era na verdade o lobisomem apaixonado, mas Ziza sabia e era o que importava.
O tórrido romance durou quinze anos; Zé era um bicho safado em todos os sentidos, quando morreu vitima de uma bala de prata, Ziza e o seu filho Heitor permaneceram na tapera. Por esta época as garrafadas e benzimentos de Mãe Ziza já corriam o mundo, e muita gente a procurava em busca de suas ervas medicinais.
Heitor completou o ensino básico, gostava de ler, exímio violeiro, cantador do vale, fazia entalhes em madeira, um artista nato, amigo dos amigos, apenas a sua mãe sabia do seu segredo; Heitor herdara a sina da besta-fera... Estamos entrando em outra história, Heitor deixou a sua marca no Tucum, e seu nome ainda é lembrado ao redor das fogueiras pelos pescadores em noites enluaradas, um dos causos inesquecível é o do padre e o lobisomem, mas como já disse, é outra história.
XVI
Plínio
O seu nome era Plínio, costumava aparecer sempre à tardinha na nossa rua; uma rua de calçada elevada, de terra batida, enfeitada por casas antigas. Exímio jogador, era ele quem desfalcava a nossa coleção de bolinhas de gude, ganhava sempre.
Nas tardes tranqüilas de nossa infância costumávamos apostar gibis nos muitos jogos praticados pela molecada; Plínio chegava de mãos vazias e voltava carregado de nossas amadas revistas em quadrinhos.
Menino de uns dez anos, moreno trigueiro, sempre alegre com seu sorriso conquistador; costumava contar suas histórias logo após o escurecer, e um pouco antes de nossas mães se esgoelarem de gritar nossos nomes chamando para o jantar.
Uma tarde Plínio não veio ao nosso encontro, ficamos esperando por ele; era uma sexta-feira e a história seria de lobisomem. No total éramos oito crianças da mesma rua, mais umas cinco das ruas próximas, e entre a gurizada os três Zé se destacavam; Zé Pinguim, Zé Gordo, Zé Pelado.
Os três Zé eram nossa fonte de informação; eles faziam entrega para a quitanda do Seu Onofre, e rodavam a cidade... Foi Zé Pelado quem nos informou que sem querer querendo descobriu o endereço do Plínio; -“Ontem eu vi o Plínio entrando em uma casa na Vila Sapo!”
Estávamos com saudade de Plínio e seus causos, e pedimos ao Zé Pelado que nos levasse até o endereço de nosso amigo, éramos três meninos; João Baleia, Toninho Rato e Zé Pelado... Paramos frente à casa e começamos a chamar por nosso amigo; -“Plínio, Plínio, Plínio...”, uma jovem senhora veio até o portão; -“Plínio não mora mais aqui, meninos...”
- Nosso colega Zé Pelado o viu entrar nesta casa na semana passada...
- “Impossível guri!”, falou a senhora e começou a chorar...
- Calma moça! Não viemos incomodar, é que ele é nosso amigo e já faz três semanas que não aparece na nossa rua...
- Crianças, não brinquem com coisa séria! Plínio faleceu há cinco anos, e o seu quarto permanece fechado desde o dia de sua morte, ainda convivo com a dor da perda de meu filho, entrem, eu vou mostrar o quartinho dele...
Estávamos os três se pelando de medo, entramos no quarto e nossos cabelos se arrepiaram; espalhados sobre a cama todos os nossos gibis, numa caixinha de madeiras as nossas jóias mais preciosas, nossas bolinhas de gude... Numa mesinha uma foto, Plínio, a mãe e o pai...
Na foto Plínio com seu sorriso sapeca, o menino que não víamos há três semanas, nosso contador de histórias, o menino que partiu deste mundo faz cinco anos, o guri que vinha do céu para alegrar nossos fins de tarde...
Mesmo hoje, após setenta anos, conversando com o doutor José Carlos Andrade, meu amigo Zé Pelado dos tempos infantis, ainda não conseguimos esquecer a estranha história de Plínio, um menino que chegou do nada, levou nossos gibis, nossas bolinhas de gude, conquistou a nossa amizade e voltou para o mundo onde vivem os sonhos...
Tenho certeza de que ainda vou encontrar o Plínio no outro lado da vida, ele eternamente menino com seu sorriso luminoso e olhar feliz.
Fim do Primeiro Volume
Iguape/05-01-2021
Autor – Gastão Ferreira

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