A Lenda do Santo Cruzeiro
As lembranças e saudades que possuo do nosso Cruzeiro assemelham-se àquelas de todos os piquetenses, principalmente dos que moram distante de nossa cidade.
Mas eu tenho uma história sobre ele...
A lenda do Santo Cruzeiro me foi contada e não poderia deixar de transcrevê-la aqui.
Menina de imaginação fértil e sonhadora, ainda morando na Rua Major Carlos Ribeiro, nas proximidades do Morro do Cruzeiro, passava horas olhando para o alto.
Tentava decifrar os segredos e dramas vividos ao pé daquela Cruz, cochichados à boca pequena, longe "das crianças", mas, com certeza, ouvidos por elas.
Eu me torturava na tentativa de concatenar aquelas narrativas que chegavam sussurradas e mal acabadas aos meus ouvidos. Um dia, minha avó materna Maria de Lourdes Beraldo Leite, uma mulher extremamente à frente de seu tempo, sem ligar para o que era permitido ou não falar para as crianças, satisfez a minha curiosidade, contando-me a história que, segundo a tradição, desenrolara-se aos pés da Santa Cruz.
O drama ocorrera há muitos anos, no início do Século XX. Duas famílias poderosas disputavam o poder na região valeparaibana.
Ferrenhos inimigos políticos não se falavam e nem frequentavam o mesmo local, pois sempre havia o risco de um atrito sério.
Ela não sabia como - e isso ninguém nunca soube dizer - dois jovens destas famílias conseguiram se conhecer e se encontrar, apaixonando-se loucamente.
Como o seu casamento não podia acontecer à vista dos homens, através de um padre amigo e sensato, uniram-se às escondidas. Como se encontravam?
Quem os acobertava?
Perguntas que ninguém jamais soube responder...
A moça engravidou.
Mesmo sabendo que ela estava casada perante Deus, seu pai não permitiu que fosse viver com o marido.
Trancou a filha em um quartinho onde ela teve a criança, sozinha e longe da vista de todos. Pouca ou quase nenhuma alimentação ela recebia.
O pai desejava que através da inanição da mãe a gestação não chegasse ao termo. Mas a criança nasceu.
A mãe não foi libertada de seu cativeiro e o terrível patriarca continuou a deixá-la quase sem alimentos.
A pobre moça amamentou o filho enquanto pode, mas a sua fraqueza fez com que o leite secasse. Suas mamas sangravam de tanto que o menino as sugava, faminto, sem conseguir uma única gota de alimento.
Então, ela teve a ideia de mitigar a fome do filho com o seu próprio sangue. Cortava-se, deixava o precioso líquido escorrer e com ele alimentava o bebê.
Os meses passavam.
O pai - e agora avô - desnaturado continuava a mantê-los em cárcere privado, indignado por aquela criança ainda existir.
O garoto crescia e necessitava de mais alimento do que o sangue já fraco da mãe.
Desesperada, a pobre mulher começou a tirar bifes de suas pernas, nádegas e braços, fornecendo assim o alimento que o meninozinho precisava.
Com a chegada do inverno, sempre rigoroso em nossa região, o garotinho foi acometido de uma pneumonia e faleceu.
O desaparecimento da indesejada criança conduziu à liberdade da mãe. Em precárias condições de saúde necessitou de cuidados médicos.
Penalizado pela situação em que a moça se encontrava e conhecedor de sua história, o médico avisou ao jovem esposo que, até então, desconhecia o paradeiro de sua amada e do filho que ela esperava. Conseguiu um encontro, às escondidas, entre os dois apaixonados, prometendo auxiliá-los na fuga.
No entanto, os padecimentos da pobre mulher haviam sido demasiados, comprometendo seriamente a sua saúde. Tornara-se tuberculosa; naqueles tempos não havia cura para essa doença, o que significava morte certa e com muito sofrimento. Mesmo assim, o médico prometeu acobertar a fuga dos dois.
Os jovens, no entanto, não esperavam mais um futuro melhor e feliz. Fingiram acreditar no médico que lhes acenava com a possibilidade de reconstruirem suas vidas.
Seus planos eram outros, mas, como precisavam de ajuda para a fuga, não os revelaram ao amigo disposto a auxiliá-los. Deveriam instalar-se numa fazenda próxima a Campos de Jordão, cujo clima privilegiado poderia ajudar na recuperação, ao menos parcial, da pobre moça.
Fugiram sim, mas num pacto de amor eterno e morte, em vez de dirigirem-se ao local indicado, subiram o Morro do Santo Cruzeiro e lá, abraçados, envenenaram-se com formicida.
Os cadáveres foram encontrados por peregrinos que se dirigiram ao local, cumprindo promessas. Já putrefatos mantinham-se ainda unidos num último amplexo.
Tentaram apartá-los - cada família desejava enterrar o filho em seu próprio jazigo - mas não conseguiram. Os corpos, fundidos por um milagre da Santa Cruz, encontravam-se inseparáveis, indivisíveis...
Por respeito a este amor que venceu a vida para perdurar na eternidade, sepultaram os dois jovens, abraçados e unidos, ao pé do nosso Cruzeiro, ao lado do qual foi erigida uma capelinha, hoje em ruínas.
Ao ouvir este relato trágico, minhas lágrimas de menina mesclaram-se às de minha avó que, eu tenho certeza, nunca leu Shakespeare. Desconhecia a história de "Romeu e Julieta", não podendo, portanto, imaginar um drama tão parecido com a vida dos amantes de Verona.
Vó Lourdes realmente cria na veracidade do que contava. Por muitos anos eu também acreditei.
Hoje, com quase seis décadas de existência, começo a duvidar que tenha sido assim, embora ainda acredite na força do amor!
Mesmo parecendo inverossímil para os nossos conhecimentos atuais, não podia omitir a lenda do nosso Santo Cruzeiro, narrada por uma pessoa tão maravilhosamente romântica e crédula, como minha avó querida, nascida em Piquete, em 1909.
Texto de Maux
Créditos da lenda para a saudosa Maria de Lourdes Beraldo Leite.
O Morro do Santo Cruzeiro
No morro em frente à velha matriz de São Miguel uma cruz de concreto brilha nas noites piquetenses. Ela substitui outra, de madeira, fincada lá no alto em 1900 e benta por Frei Silvério, frade franciscano que aqui estava em missão apostólica, conforme o livro "Rememorando...", de autoria de Carlos Vieira Soares.
Afirma ainda o nosso cronista e historiador que "o lenho desse cruzeiro era o de uma caviúna derrubada e lavrada no próprio morro pelo famoso madeireiro José Serrador."
Uma tosca e humilde capelinha de tijolos lá foi erguida em 1930. O transporte de tijolos, pedras e latas de areia e água nos ombros de dedicados trabalhadores.
Sua inauguração em 3 de maio, festa de Santa Cruz - arcos de bambu, bandeirinhas, foguetes de vara, cantos e preces.
Ela brotou do chão graças ao trabalho de uma comissão composta por Auzelino de Castro, Odilon Soares da Costa, Benedito Pereira, Nourival Crispim de Castro e Benedito José de Oliveira.
O terreno, doado por Dona Domiciana Relvas, esposa do Coronel Luiz Relvas, mulher de destaque na sociedade da época.
O tempo carcomeu a cruz, carcomeu os instrumentos da Paixão, todos de madeira - os cravos, a coroa-de-espinhos, a lança, o martelo.
E o galo - dolorosa lembrança da traição de Simão Pedro.
A igrejinha também desapareceu. Ela faz parte da minha infância. De uma das janelas do casarão de meu avô Chiquinho Máximo eu a contemplava desafiando as chuvas, os sóis e os ventos.
Eu e meus amigos subíamos a encosta à cata de passarinhos ou por espírito de andança. Éramos inseparáveis, colegas de escola, de catecismo e de acolitato. Caminhávamos descalços, sem pressa de chegar. Dava gosto ver borboletas dançarinas, gafanhotos saltitantes - tão verdes que pareciam folhas, dormideiras sempre melindrosas aos nossos toques, juazeiros carregados de florinhas e frutinhos coloridos - poesia viva na aspereza do caminho pedregoso e esburacado.
Além das cercas de arame farpado vacas nos observavam espantadas, orelhas em pé, caudas pendulares.
À medida que subíamos contemplávamos a cidadezinha.
Piquete parecia um presépio. Bois na fartura do capim. Pessoas que nem formigas. Apito do trem-dos-operários. Cantiga de carros-de-boi. Gritos e vozes. O azul da Mantiqueira. A imponência do Pico dos Marins. A solenidade da vetusta Matriz de São Miguel.
Sentávamo-nos junto à cruz. Lá respirávamos a paz e o frescor da paisagem. Aos seus pés, pedras levadas pela fé: pagamento de promessas ou espírito de penitência. Imagens quebradas, às quais a devoção exigia muito respeito. Bilhetes com pedidos de benesses do céu. Na festa de Santa Cruz ou na Sexta-feira maior abria-se a pesada porta da capela. Cheiro de coisa velha. Um altar de madeira, santos de gesso, flores de papel crepom. Mulheres rezadeiras. Crianças barulhentas. Namorados de mãos dadas.
Certa vez, o morro foi palco de uma tragédia: o suicídio de dois jovens enamorados com formicida. Ele de farda - soldado do Contingente da Fábrica Presidente Vargas. Ela - apenas quinze anos, linda no rosado do rosto moreno.
Morreram abraçadinhos. Ungidos de amor. Banhados de luar. Orvalhados da madrugada. Iluminados da manhã.
Muita conversa rolou em torno dos amantes. Voz corrente que as famílias reprovavam o namoro. Até de gravidez falaram. Disse-me, porém, uma senhora que fora colega e amiga da desventurada adolescente que ela morreu virgem "moça donzela", como se falava na época.
Eu menino, marcou-me outro acontecimento funesto - morte de Tarcísio, seis anos de idade, os pais "seu" Aníbal Roque e dona Maria da Palma, antigos moradores do pé do morro.
Foi triste vê-lo eletrocutado, a mãozinha esquerda colada a um poste de ferro da rede pública de iluminação. Era o entardecer de um sábado chuvoso. No domingo, enterro - o caixãozinho branco, muitas crianças, flores dos quintais. O morro de luto. Parecia que o garoto era filho de todas as famílias que lá moravam gente amiga e solidária: "seu" Leopoldino Gabriel, prole numerosa; "seu" Olegário de Almeida, raizeiro, com suas "garrafadas" para curar doenças e picadas de bichos peçonhentos; dona Laurinda de Almeida, lavadeira; dona Edwirges Tereza Ramos, ajudante e parteira, e tia Venância, cozinheira pra ninguém botar defeito.
Quando contemplo o Cruzeiro, em meio às lembranças avulta o rosto de Nhá Dita, preta velha da antiga estrada do Itabaquara, que fizera a promessa de iluminar com velas a íngreme colina. Seria comovente o espetáculo das luzes tremulantes!
Coluna do Chico Máximo
Jornal "O Estafeta" - Piquete, SP
Setembro de 2005
As fotos desta página, belíssimas e inéditas, revelando detalhes do nosso Santo Cruzeiro, inclusive as ruínas da capelinha, são de Celeste Aída Rosa.
Agradeço-lhe a gentileza da cessão destas imagens, que tantas saudades vão despertar nos piquetenses espalhados por este Brasil afora...
http://www.mauxhomepage.net/piquete/historia/historia8.htm
As lembranças e saudades que possuo do nosso Cruzeiro assemelham-se àquelas de todos os piquetenses, principalmente dos que moram distante de nossa cidade.
Mas eu tenho uma história sobre ele...
A lenda do Santo Cruzeiro me foi contada e não poderia deixar de transcrevê-la aqui.
Menina de imaginação fértil e sonhadora, ainda morando na Rua Major Carlos Ribeiro, nas proximidades do Morro do Cruzeiro, passava horas olhando para o alto.
Tentava decifrar os segredos e dramas vividos ao pé daquela Cruz, cochichados à boca pequena, longe "das crianças", mas, com certeza, ouvidos por elas.
Eu me torturava na tentativa de concatenar aquelas narrativas que chegavam sussurradas e mal acabadas aos meus ouvidos. Um dia, minha avó materna Maria de Lourdes Beraldo Leite, uma mulher extremamente à frente de seu tempo, sem ligar para o que era permitido ou não falar para as crianças, satisfez a minha curiosidade, contando-me a história que, segundo a tradição, desenrolara-se aos pés da Santa Cruz.
O drama ocorrera há muitos anos, no início do Século XX. Duas famílias poderosas disputavam o poder na região valeparaibana.
Ferrenhos inimigos políticos não se falavam e nem frequentavam o mesmo local, pois sempre havia o risco de um atrito sério.
Ela não sabia como - e isso ninguém nunca soube dizer - dois jovens destas famílias conseguiram se conhecer e se encontrar, apaixonando-se loucamente.
Como o seu casamento não podia acontecer à vista dos homens, através de um padre amigo e sensato, uniram-se às escondidas. Como se encontravam?
Quem os acobertava?
Perguntas que ninguém jamais soube responder...
A moça engravidou.
Mesmo sabendo que ela estava casada perante Deus, seu pai não permitiu que fosse viver com o marido.
Trancou a filha em um quartinho onde ela teve a criança, sozinha e longe da vista de todos. Pouca ou quase nenhuma alimentação ela recebia.
O pai desejava que através da inanição da mãe a gestação não chegasse ao termo. Mas a criança nasceu.
A mãe não foi libertada de seu cativeiro e o terrível patriarca continuou a deixá-la quase sem alimentos.
A pobre moça amamentou o filho enquanto pode, mas a sua fraqueza fez com que o leite secasse. Suas mamas sangravam de tanto que o menino as sugava, faminto, sem conseguir uma única gota de alimento.
Então, ela teve a ideia de mitigar a fome do filho com o seu próprio sangue. Cortava-se, deixava o precioso líquido escorrer e com ele alimentava o bebê.
Os meses passavam.
O pai - e agora avô - desnaturado continuava a mantê-los em cárcere privado, indignado por aquela criança ainda existir.
O garoto crescia e necessitava de mais alimento do que o sangue já fraco da mãe.
Desesperada, a pobre mulher começou a tirar bifes de suas pernas, nádegas e braços, fornecendo assim o alimento que o meninozinho precisava.
Com a chegada do inverno, sempre rigoroso em nossa região, o garotinho foi acometido de uma pneumonia e faleceu.
O desaparecimento da indesejada criança conduziu à liberdade da mãe. Em precárias condições de saúde necessitou de cuidados médicos.
Penalizado pela situação em que a moça se encontrava e conhecedor de sua história, o médico avisou ao jovem esposo que, até então, desconhecia o paradeiro de sua amada e do filho que ela esperava. Conseguiu um encontro, às escondidas, entre os dois apaixonados, prometendo auxiliá-los na fuga.
No entanto, os padecimentos da pobre mulher haviam sido demasiados, comprometendo seriamente a sua saúde. Tornara-se tuberculosa; naqueles tempos não havia cura para essa doença, o que significava morte certa e com muito sofrimento. Mesmo assim, o médico prometeu acobertar a fuga dos dois.
Os jovens, no entanto, não esperavam mais um futuro melhor e feliz. Fingiram acreditar no médico que lhes acenava com a possibilidade de reconstruirem suas vidas.
Seus planos eram outros, mas, como precisavam de ajuda para a fuga, não os revelaram ao amigo disposto a auxiliá-los. Deveriam instalar-se numa fazenda próxima a Campos de Jordão, cujo clima privilegiado poderia ajudar na recuperação, ao menos parcial, da pobre moça.
Fugiram sim, mas num pacto de amor eterno e morte, em vez de dirigirem-se ao local indicado, subiram o Morro do Santo Cruzeiro e lá, abraçados, envenenaram-se com formicida.
Os cadáveres foram encontrados por peregrinos que se dirigiram ao local, cumprindo promessas. Já putrefatos mantinham-se ainda unidos num último amplexo.
Tentaram apartá-los - cada família desejava enterrar o filho em seu próprio jazigo - mas não conseguiram. Os corpos, fundidos por um milagre da Santa Cruz, encontravam-se inseparáveis, indivisíveis...
Por respeito a este amor que venceu a vida para perdurar na eternidade, sepultaram os dois jovens, abraçados e unidos, ao pé do nosso Cruzeiro, ao lado do qual foi erigida uma capelinha, hoje em ruínas.
Ao ouvir este relato trágico, minhas lágrimas de menina mesclaram-se às de minha avó que, eu tenho certeza, nunca leu Shakespeare. Desconhecia a história de "Romeu e Julieta", não podendo, portanto, imaginar um drama tão parecido com a vida dos amantes de Verona.
Vó Lourdes realmente cria na veracidade do que contava. Por muitos anos eu também acreditei.
Hoje, com quase seis décadas de existência, começo a duvidar que tenha sido assim, embora ainda acredite na força do amor!
Mesmo parecendo inverossímil para os nossos conhecimentos atuais, não podia omitir a lenda do nosso Santo Cruzeiro, narrada por uma pessoa tão maravilhosamente romântica e crédula, como minha avó querida, nascida em Piquete, em 1909.
Texto de Maux
Créditos da lenda para a saudosa Maria de Lourdes Beraldo Leite.
O Morro do Santo Cruzeiro
No morro em frente à velha matriz de São Miguel uma cruz de concreto brilha nas noites piquetenses. Ela substitui outra, de madeira, fincada lá no alto em 1900 e benta por Frei Silvério, frade franciscano que aqui estava em missão apostólica, conforme o livro "Rememorando...", de autoria de Carlos Vieira Soares.
Afirma ainda o nosso cronista e historiador que "o lenho desse cruzeiro era o de uma caviúna derrubada e lavrada no próprio morro pelo famoso madeireiro José Serrador."
Uma tosca e humilde capelinha de tijolos lá foi erguida em 1930. O transporte de tijolos, pedras e latas de areia e água nos ombros de dedicados trabalhadores.
Sua inauguração em 3 de maio, festa de Santa Cruz - arcos de bambu, bandeirinhas, foguetes de vara, cantos e preces.
Ela brotou do chão graças ao trabalho de uma comissão composta por Auzelino de Castro, Odilon Soares da Costa, Benedito Pereira, Nourival Crispim de Castro e Benedito José de Oliveira.
O terreno, doado por Dona Domiciana Relvas, esposa do Coronel Luiz Relvas, mulher de destaque na sociedade da época.
O tempo carcomeu a cruz, carcomeu os instrumentos da Paixão, todos de madeira - os cravos, a coroa-de-espinhos, a lança, o martelo.
E o galo - dolorosa lembrança da traição de Simão Pedro.
A igrejinha também desapareceu. Ela faz parte da minha infância. De uma das janelas do casarão de meu avô Chiquinho Máximo eu a contemplava desafiando as chuvas, os sóis e os ventos.
Eu e meus amigos subíamos a encosta à cata de passarinhos ou por espírito de andança. Éramos inseparáveis, colegas de escola, de catecismo e de acolitato. Caminhávamos descalços, sem pressa de chegar. Dava gosto ver borboletas dançarinas, gafanhotos saltitantes - tão verdes que pareciam folhas, dormideiras sempre melindrosas aos nossos toques, juazeiros carregados de florinhas e frutinhos coloridos - poesia viva na aspereza do caminho pedregoso e esburacado.
Além das cercas de arame farpado vacas nos observavam espantadas, orelhas em pé, caudas pendulares.
À medida que subíamos contemplávamos a cidadezinha.
Piquete parecia um presépio. Bois na fartura do capim. Pessoas que nem formigas. Apito do trem-dos-operários. Cantiga de carros-de-boi. Gritos e vozes. O azul da Mantiqueira. A imponência do Pico dos Marins. A solenidade da vetusta Matriz de São Miguel.
Sentávamo-nos junto à cruz. Lá respirávamos a paz e o frescor da paisagem. Aos seus pés, pedras levadas pela fé: pagamento de promessas ou espírito de penitência. Imagens quebradas, às quais a devoção exigia muito respeito. Bilhetes com pedidos de benesses do céu. Na festa de Santa Cruz ou na Sexta-feira maior abria-se a pesada porta da capela. Cheiro de coisa velha. Um altar de madeira, santos de gesso, flores de papel crepom. Mulheres rezadeiras. Crianças barulhentas. Namorados de mãos dadas.
Certa vez, o morro foi palco de uma tragédia: o suicídio de dois jovens enamorados com formicida. Ele de farda - soldado do Contingente da Fábrica Presidente Vargas. Ela - apenas quinze anos, linda no rosado do rosto moreno.
Morreram abraçadinhos. Ungidos de amor. Banhados de luar. Orvalhados da madrugada. Iluminados da manhã.
Muita conversa rolou em torno dos amantes. Voz corrente que as famílias reprovavam o namoro. Até de gravidez falaram. Disse-me, porém, uma senhora que fora colega e amiga da desventurada adolescente que ela morreu virgem "moça donzela", como se falava na época.
Eu menino, marcou-me outro acontecimento funesto - morte de Tarcísio, seis anos de idade, os pais "seu" Aníbal Roque e dona Maria da Palma, antigos moradores do pé do morro.
Foi triste vê-lo eletrocutado, a mãozinha esquerda colada a um poste de ferro da rede pública de iluminação. Era o entardecer de um sábado chuvoso. No domingo, enterro - o caixãozinho branco, muitas crianças, flores dos quintais. O morro de luto. Parecia que o garoto era filho de todas as famílias que lá moravam gente amiga e solidária: "seu" Leopoldino Gabriel, prole numerosa; "seu" Olegário de Almeida, raizeiro, com suas "garrafadas" para curar doenças e picadas de bichos peçonhentos; dona Laurinda de Almeida, lavadeira; dona Edwirges Tereza Ramos, ajudante e parteira, e tia Venância, cozinheira pra ninguém botar defeito.
Quando contemplo o Cruzeiro, em meio às lembranças avulta o rosto de Nhá Dita, preta velha da antiga estrada do Itabaquara, que fizera a promessa de iluminar com velas a íngreme colina. Seria comovente o espetáculo das luzes tremulantes!
Coluna do Chico Máximo
Jornal "O Estafeta" - Piquete, SP
Setembro de 2005
As fotos desta página, belíssimas e inéditas, revelando detalhes do nosso Santo Cruzeiro, inclusive as ruínas da capelinha, são de Celeste Aída Rosa.
Agradeço-lhe a gentileza da cessão destas imagens, que tantas saudades vão despertar nos piquetenses espalhados por este Brasil afora...
http://www.mauxhomepage.net/piquete/historia/historia8.htm
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