sexta-feira, 25 de outubro de 2013

"PROJETO RODAS LIVRES"

Estou em São Miguel Arcanjo, saio da lan-house, volto para o hotel parando num supermercado para comprar víveres… água mineral, granola, bananas. 
Chego ao quarto, visto uns agasalhos e saio para comer algo. 
Ao deixar o self-service já são mais de oito e meia da noite. 
A rua está deserta, faz frio, dirijo-me à praça da matriz, ponto central de toda cidade interiorana que se preze e sento-me num banco de madeira para aguardar os 20 minutos que o SPOT leva para transmitir sua posição aos satélites. 
Fico revendo no smartphone os depoimentos gravados pelos amigos na festa de bota-fora. 
Comovo-me. 
Que legal o Luiz Couto ter tido a ideia de gravar isso, adorei.
Absorto, mal vejo o passar do tempo no relógio da torre da igreja. 
Mas ele, à minha revelia, avança inexorável. 
São já 9 da noite, olho em torno… um grupo de jovens aqui, outro de bêbados ali… fora isso, a desolação. 
Saio a caminhar por calçadas quietas, cruzo esquinas vazias e busco vida numa providencial padaria que permanece aberta. Mas o cafezinho ocupa apenas poucos minutos e já estou de novo a esmo no ermo.
Paremos de brigar com as circunstâncias… volto ao hotel. 
Ligo a TV e comparo os humores da Grande Família e d’ A Praça é Nossa, prefiro o primeiro, rio de ambos, adormeço. Sono profundo e eis que sou despertado por pancadas vindas do corredor. 
Alguém está esmurrando algo ou coisa assim. 
Espero que isso acabe. 
Não acaba. 
Olho no relógio, são 3 e meia da madrugada. 
Cáspita! 
Quando ouço pela enésima vez o mesmo som, interfiro: PORRA, CARALHO! 
 E aguardo pelo resultado… negativo… BANG.
Desagrada-me ter de me indispor com alguém no meio da noite, mas preocupa-me perder a noite de sono – o que consequentemente estragaria também o dia. 
Tenho muito a pedalar pela manhã. 
BANG. 
Abro a porta e grito no corredor: 
- VAMOS FAZER SILÊNCIO, POR FAVOR? 
Agora sim, respeitarão… 
Volto para cama, tento dormir… 
BANG. 
Basta! 
Levanto-me, visto-me com uma bermuda e saio disposto a arranjar uma encrenca com quem quer que seja o sem-noção que está causando tal distúrbio. 
BANG. 
Vem daquela direção… 
Achei – putz, é apenas uma abandonada porta entreaberta. Cacete… 
Fecho-a e fico filosofando sobre as coisas que acontecem na vida… 
Retornemos ao leito.
Saio pela manhã, tempo nublado e brisa fria. 
Pedalo devagar para esticar ao máximo a energia num dia em que me aguardam mais de 50 km de estrada. 
Começam as subidas, mas assim logo no começo do dia elas são fáceis. 
A estrada, para variar, é linda. 
Pouco trânsito, um sossego. 
Mas algo me incomoda… uma forte dor na têmpora, causada pela agressão do ar da manhã batendo no fundo da minha narina esquerda. 
Isso tem se repetido todos os dias. 
Ontem o problema atingiu também o ouvido direito, mas isso corrigi com dois prosaicos chumaços de algodão protegendo os canais auditivos. 
De quebra, poupam os tímpanos do barulho dos caminhões. Quanto às narinas… bem… considero extrema e prematura a iniciativa de também entupi-las de algodão. 
Um dia será inevitável.
Minha cabeça não consegue pensar em outra coisa que não seja “vou comprar um lenço prá proteger o nariz na próxima cidade”. 
Enquanto a dor martela o sinus esse pensamento idiota fica martelando o cérebro. 
Tenho na bagagem uma balaclava, mas recuso-me a utilizá-la porque é preta e me deixaria com a aparência de um assassino. É uma opção minha. 
Após 20 km chego ao distrito de Gramadinho e logo ao trevo que une esta estrada secundária à SP-127, essa sim uma autoestrada de primeiro-mundo, com um amplo e perfeito acostamento, cuja pavimentação – surpresa – tem a mesma qualidade daquela da pista de rodagem. 
Um tapete! 
Aqui a topografia é outra. 
Ao invés dos constantes sobes e desces, encontro longos trechos planos. 
Chato é que quando há aclives também ficaram intermináveis… mas cicloturismo, ao menos na minha experiência, tem consistido basicamente em vencer subidas. Talvez porque sejam elas que nos marcam, o resto é a parte fácil.
Quando sinto fome encosto a bicicleta numa cerca, desço e abro o alforje-cozinha. 
Delicio-me com 2 bananas, muita granola, umas 4 castanhas do Pará, um sachê de Carb-Up e água. 
Enquanto estou vertendo na boca a granola seca, encosta um caminhão-guincho do DER, o motorista buzina e com um gesto pergunta se está tudo bem. 
Surpreso e feliz pela oferta de assistência, faço um “positivo” e aponto para o saco de cereais, perguntando-lhe se está servido. Ele sorri, recusa e parte. 
Que legal. 
Noutro momento cruzaria novamente com ele, que retornava pela pista oposta, buzinando num cumprimento.
Pela manhã, logo ao sair de São Miguel Arcanjo, recebi uma ligação muito especial. 
Ana Paula Anzelotti, minha querida amiga de já uns 15 anos, tomara a si a iniciativa de produzir um alojamento na minha próxima parada e me ligava para passar as coordenadas.
- “Elcio, tudo certo, anota aí: quando chegar em Capão Bonito dirija-se à prefeitura, ligue para tal pessoa, número tal, que você terá uma noite de alojamento gratuito”. 
Olha só, que ajuda maravilhosa. Não esperava por isso e fiquei profundamente feliz em constatar que o Rodas Livres é bem quisto a ponto de despertar esse tipo de atitude. Ana, muitíssimo obrigado, você inaugurou uma nova fase na brincadeira: agora já não estou só… há mais pessoas no projeto e não apenas virtualmente.
Mas ainda estou a 35 km do meu destino e começo a sentir algo estranho na bicicleta… ela parece bambolear quase imperceptivelmente. 
Vem-me à cabeça a frase de um piloto de helicóptero com quem voei certa vez. 
Ele disse “alguns acidentes acontecem porque há pilotos que ao ouvir um ruído destoante não procuram imediatamente a causa”. 
Com esse conselho profissional em mente, paro e tento descobrir algo errado na roda de trás. Não é pneu murcho. A dianteira parece OK. Levanto a traseira da bicicleta para fazer girar a roda e analisar o alinhamento. O peso é grande, a posição incômoda, a roda parece não girar direito, não consigo meu intento. 
Volto a pedalar. 
Um pouco adiante, passo a ouvir um ritmado nhec-nhec. A julgar pela freqüência, convenço-me de que o problema é na roda traseira. Diminuo a velocidade, calculo quando será o próximo nhec e freio no momento exato. Desço e vou averiguar os raios que estão exatamente abaixo do cubo. Vários estão soltos. 
Uau!! Caraca… e eu com hora marcada para chegar, porque estou sendo aguardado e devo me reportar até no máximo às 16hs.
Decido arriscar e continuar até lá… e vou sambando, ou rebolando, ou coisa que o valha pela estrada afora… 
Num trecho plano, para minha surpresa, vejo que dezenas de laranjas saltaram – não sei como – da carroceria de um caminhão que vinha na pista oposta e algumas vêm rolando dar debaixo da minha roda. 
Penso em parar e colhê-las, mas estou apurado e penso que é melhor não. Prossigo sem laranjas, mas a cena foi inusitada e divertida.
Sinto que o problema da roda agrava-se rapidamente. 
Alguns quilômetros foram suficientes para que o raio doente contaminasse os vizinhos, agora a oscilação lateral do centro do guidão já tem um curso de quase 3 centímetros. É muita coisa e o rendimento da bicicleta cai bastante. Estou cansado, mas ainda faltam 10 km. 
A esta altura já não estou dando conta de pedalar nas subidas. Na maioria delas, desço e empurro, às vezes com um extensor preso aos dois retrovisores e passado por detrás do banco para desobrigar-me de conduzir o guidão. Assim posso caminhar ereto atrás da bicicleta, segurando-a apenas pelo encosto do banco. 
No final da viagem a situação complica-se bastante e vejo que os 58 km previstos para hoje estão no limite da minha capacidade. Já fiz 160 km em um dia, mas com a bicicleta descarregada. Com carga, ainda que reduzida, são outros quinhentos…
Os 5 quilômetros finais são um suplício, sinto-me como quem já se arrasta. 
Em nada ajuda a constante preocupação de que a roda arrie de vez, que trave ou coisa parecida. Mas tudo isso faz parte. 
Chego a Capão Bonito às 15 hs em ponto, exatas seis após ter partido de São Miguel Arcanjo, tendo coberto 60 km a uma média de 10 km/h. É pouco, mas foi o que deu prá fazer e, afinal, cheguei. É isso o que importa.
Ligo para o número indicado e falo com o secretário da Cultura, Prof. João Bosco, que, em nome do prefeito, Sr. Julio Fernando Galvão Dias, me recebe de braços abertos. 
Grande Ana Paula! 
Abuso e arrisco pedir uma segunda noite de repouso… estou realmente precisando me recompor antes de prosseguir. Sou atendido. 
Que delícia ver as forças do universo conspirarem positivamente. 
Dirijo-me à secretaria da cultura com a bicicleta dançando mais que Fred Astaire e ao chegar deparo-me com uma equipe prá lá de bem humorada. 
Enquanto me crivam de perguntas todos fazem piadas, o que parece ser uma saudável mania municipal. Sinto-me em casa e em breve sou conduzido, pelo Mario Roberto, à bicicletaria do Seu Cabral. 
Explico-lhe:
- “até poderia ter apertado o raio, mas prefiro dar uma geral na roda e para isso preciso de assistência profissional”. 
Ele, prá lá de solícito, me manda encostar a magrela e vir buscá-la daí a pouco.
Digo que não há pressa, que voltarei na manhã do sábado, e sigo com o Mario para o Hotel Regina, na praça da Matriz, onde ficarei por duas noites por cortesia da Prefeitura Municipal de Capão Bonito. 
Não tenho palavras para agradecer tamanha gentileza.
À noite, outra grande alegria: meu amigo Luiz Couto, ciente das dificuldades que estou encontrando para entender-me com o novo smartphone, chega de São Paulo para me dar uma lição preciosíssima sobre os vários recursos do aparelho (entendi muita coisa, mas ainda estou focado no texto, aguardem melhores fotos hehe). 
Lá pelas 20 hs vamos ao restaurante Cheiro Verde para jantar e lá ficamos estudando o Samsung S2. 
Aos poucos, porém, começa a chegar gente e lá pelas 23 uma banda ataca ao vivo rocks muito bem executados. 
De restaurante o local transmuta-se em point da galera e acabamos cercados por um agito geral. 
Inesperado mas muito bem-vindo.
E assim, graças à boa vontade e à iniciativa de dois dos meus amigos, meu dia foi pleno de graças e por elas sou infinitamente grato. 
Viva o voluntariado, uma característica humana tão rara quanto ancestral e que, quando se dá, faz a luz do mundo brilhar mais forte.

DATA: 09. Setembro. 2011 / Sexta-feira
LOCAL: Capão Bonito, São Paulo (Brasil), ALTITUDE: 705m
TEMPO: Dia nublado a maior parte do tempo, manhã fria. Sem chuva. Temperatura: ?
KMs PEDALADOS HOJE: 60 km (São Miguel Arcanjo a Capão Bonito)
MÉDIA: 10 km/h
TOPOGRAFIA: região montanhosa nos primeiros 20 km, um pouco menos após.
DIAS DE ESTRADA: 7
DIAS PARADO: 2
KMs PEDALADOS ACUMULADOS: 242 km
QUILOMETRAGEM TOTAL PERCORRIDA (inclui ar + mar): 242 km.
O autor e o seu Cabral, abaixo.

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