sábado, 5 de julho de 2014

"1949/1968 - A JALES QUE VIVI"



A maravilhosa família de seu Altino e dona Peta



As grandes avenidas e logradouros públicos mais importantes de nossa Jales foram apropriados pelo poder econômico, para homenagear os parentes e representantes desse segmento minoritário da sociedade.
Na Jales que vivi muitas famílias realmente importantes na história dessa cidade, foram esquecidas, exatamente por não pertencerem, nem gozarem de proteção no grupo fechado do poder econômico. Em seus dois livros, o historiador Genésio Seixas levanta muitos nomes que foram decisivos na construção da história de Jales, com destaque para a família de Altino Antônio de Oliveira, pioneiro dos primeiros momentos de abertura da Vila Jalles e também vereador na primeira legislatura.
O poder legislativo jalesense tem muita documentação à disposição para conhecer, entender e interferir na história de Jales, começando pela obra de Genésio, outros trabalhos já publicados, depoimentos de moradores antigos e relatos como os que estou escrevendo no Jornal de Jales.
Pretendo contribuir para resgatar pessoas e famílias que realmente fizeram a verdadeira história de Jales. Das famílias mais numerosas e importantes da Jales pioneira, a de Seu Altino, como era chamado por todos, se destaca, com mil corpos de vantagem. Seu Altino era corretor de imóveis e, nas horas vagas, fiel escudeiro de Euplhy Jalles, que gritava, aos quatro cantos, que não tomava nenhuma decisão política importante sem consultar “Seo” Altino.
Meu pai sempre dizia que “Seo” Altino era o melhor ouvido de Jales, porque sabia ouvir, prestava muito atenção no que as pessoas estavam querendo dizer, hábito não muito comum do povo brasileiro. Baiano de fala mansa e boa prosa era respeitado até pelos adversários políticos. Sempre de paletó claro, de vez em quando, no sufoco do verão jalesense, era perguntado pelos amigos se o paletó não ajudava cozinhar a pele, recebendo resposta imediata:
- Seu moço, nasci e fui criado na Bahia. Calor é aquilo! Jales é remediado e meu paletó não gruda! E seguia em frente, sempre calmo, cumprimentando todo mundo. Gostava muito de dar esmolas, embora não fosse um homem rico Certa vez, enquanto aguardava, na porta do restaurante Tapajós, ficar pronto um frango com polenta que Joãozinho de Freitas, dono do estabelecimento, havia feito especialmente para meu pai, seu amigo de infância na região de São Carlos, aparece “Seo” Altino e começa uma boa conversa. De repente, surge um mendigo muito conhecido e leva uma boa esmola de “Seo” Altino, que o chama carinhosamente pelo nome. Após a saída do mendigo, Joãozinho de Freitas disse que admirava muito o coração generoso de “Seo” Altino, sempre pronto para dar uma esmola, recebendo como resposta que foi um costume que recebeu de sua avó, mulher muito religiosa, que ensinou seus filhos e netos ajudar os mais pobres, usando o velho chavão de “quem dá aos pobres, empresta a Deus”.
Fui para casa pensando nas palavras de Seu Altino, tentando decorar a frase. E da frase de Seu Altino, jamais me separei!
DONA PETA
Seu Altino foi casado, a vida inteira, com Dona Peta, apelido pelo qual era conhecida em toda cidade. A velha máxima de que “atrás de um grande homem sempre existe uma grande mulher”, no caso de Dona Peta se multiplica, pois ficava ao lado, na frente, atrás e muitas vezes sozinha, pois tinha uma personalidade muito forte, num tempo de acelerado machismo, se impunha à sociedade com sua destacada presença.
Mãe de muitos filhos casou-se muito nova, mas sempre conseguiu educar os filhos, ajudar seu Altino e ainda arrumar um tempo para ir ao cinema, seu lazer favorito. Dona Peta gostava tanto de cinema, que tinha cadeira cativa. Jales inteira sabia onde era a cadeira de Dona Peta. Ai de quem tentasse sentar naquele território sagrado para ela. Mulata alta, bonita, sempre com vestido de manga comprida, tinha um porte de extrema elegância, lembrando uma princesa etíope desfilando, imponente, entre seus súditos. Seus passos tinham a cadencia de uma marcha, lembrando uma rainha que caminhava em direção ao trono.
Por onde passava, era sempre cumprimentada com reverencia, sinalizando o nível de respeito e admiração que despertava na sociedade jalesense. A maior prova que elegância, postura, classe, andar e outros atributos positivos da mulher, não se aprendem em escolas de modelos, é a existência de dona Peta. Quando ela andava, parecia que deslizava. Tinha nobreza nos passos, ombros erguidos, olhar sintonizado com os movimentos do corpo. Uma simples dona de casa, cheia de filhos, mas colocando essas esqueléticas modelos atuais na fila de espera.
Mas a mesma mulher elegante, mãe exemplar, esposa dedicada, tinha no cinema sua paixão definitiva. Envolvia-se com o filme, como se fosse uma heroína da ética, a musa do bem, a busca desesperada pela justiça. Sua indignação contra o mal era manifestada, em voz alta, durante toda projeção do filme. Dificilmente perdia uma sessão de cinema. E quando reprisava, tornava assistir o mesmo filme. Quando manifestava sua opinião, em voz alta, provocava risos, dependendo o tipo de indignação.
Seus filmes favoritos eram bang-bang. Sabia o nome de todos os “mocinhos” da época, e também o nome de seus respectivos cavalos. Todas as crianças tinham seus mocinhos e cavalos favoritos. Quando havia alguma teima entre os meninos sobre nomes de mocinhos e cavalos, a gente perguntava para Dona Peta: “ - Qual é o nome do cavalo de Rocky Lane, Dona Peta? - É Tufão, meu filho.
Desde o começo do filme, Dona Peta tomava partido no filme. Geralmente nos filmes de bang-bang o bandido sempre leva vantagem no começo do filme. Ou faz uma emboscada, ou comete uma traição, ou reúne um grupo para bater no mocinho, enfim, fica aquela frustração de presenciar o mal vencendo o bem.
E naquele momento, logo no começo da sessão, Dona Peta gritava com o bandido: “- Seu cachorro, sem vergonha ! Você não perde por esperar, covarde.” Para bater no Durango Kid precisou de dez capangas, safado! Você vai encontrar o seu, logo, logo, seu descarado! O público ia ao delírio, sorria se divertia, mas ninguém tinha coragem de dirigir uma só palavra para Dona Peta. O respeito por ela era um caso deslumbrante de admiração e carinho. Uma vez, e acredito que o Célio Soares se lembra daquele dia, em que um novato na cidade deu uma de engraçadinho e tentou brincar com Dona Peta:” - E aí, Dona Peta, o filme está acabando e o mocinho sumiu!
- Fica quieto ai, seu malcriado. O filme ainda não acabou. Você já viu bandido ganhar do mocinho ?
O cinema veio abaixo. Explosão de risos. Muito bem, dona Peta !
Aplausos, gargalhadas, alegria geral!
Na saída daquela sessão, Chico Vitor comentou com “Seo” Amaro, ambos frequentadores assíduos do cinema:- “Mas você viu que porcaria de filme, Amaro? - Põe porcaria, nisso! Quem salvou o filme foi Dona Peta!
Sim, Dona Peta era a principal estrela do cinema!!!!!
OS FILHOS DE SEU ALTINO E DONA PETA
O primogênito é Maroto, já citado no artigo “A longa noite da captura”, como o heróico jovem que enfrentou e venceu a opressão nos primórdios de Jales, saltando do banheiro do trem, quando era levado preso para São Paulo. Conheço muitas passagens interessantes de Maroto. Uma das mais interessantes é quando o Circo do Lambari passava por Jales. Lambari fazia muitos amigos nas cidades por onde passava. Em Jales, Maroto era um dos principais amigos de Lambari e não perdia um espetáculo. Se o circo ficasse um mês na cidade, Maroto ia o mês inteiro. Uma loucura a paixão de Maroto pelo show que Lambari fazia, representando um caipira ingênuo. Maroto se postava na primeira fila. Começava rir assim que Lambari entrava se retorcendo todo, revelando dificuldade para andar porque a roupa estava apertada. Lambari usava a figura de Maroto como “H”, expressão muito usada no teatro de revista, quando o artista “aluga” um espectador e fica se dirigindo a ele, no transcorrer do show.
E Lambari começava seus lamentos:
- Não vá rir de mim, Maroto, mas ontem, sabe o que aconteceu?
Perdi uma nota de mil cruzeiros na rua. Só vivo perdendo as coisas. Nunca achei nada. Para falar a verdade, Maroto, a única coisa que achei, até hoje, foi o óculos de meu compadre na minha cama !!!!! E Maroto se retorcia de tanto rir, levando o público junto!
Em seguida, Lambari usava o “gancho” de gozar o pobre: “- Você sabia, Maroto, que pobre não tem torcida”?
O rico está namorando, no escuro, vestido na cabeça, calça no sapato, encostados na árvore que balança. E quando alguém passa sempre o mesmo comentário: está vendo que casal distinto. Ele é filho do doutor fulano e ela é filha do doutor beltrano. Vai ser um “baita” casamentão!
Quando é o pobre, todo sujo de graxa da oficina, encontra a moça, toda suja de panela da patroa, na esquina, toda iluminada, conversam a cinco metros de distancia.
Quando passa alguém, grita bem alto para o rapaz: “- Está matando o boi, Bastião”?
Esse é o Maroto bem humorado no Circo do Lambari.
Ele voltará em outros artigos!
O segundo filho homem mais velho de “Seo” Altino e Dona Peta é o inesquecível “Chico do Altino”, como era conhecido na cidade. Frequentei muito a casa de “Seo” Chico, porque seu filho primogênito, Altino, foi um dos maiores amigos de infância. A passagem inesquecível de “Seo” Chico é sua fidelidade, durante toda sua vida, ao mesmo posicionamento político. Foi partidário de Euplhy Jalles e, após a morte de Euplhy, se alinhava com o grupo ou partido que abrigasse a velha guarda de Euplhy.
Outro filho do casal Altino/Peta que se destacou na sociedade jalesense foi o popular FIICO. As pessoas mais antigas de Jales certamente se lembram de Fiico com muito carinho e admiração. Foi um grande jogador de futebol, volante de primeira categoria. Um craque que se fosse encaminhado para os grandes times, certamente encontraria um lugar ao sol. Tinha a mesma elegância que Dona Peta, parecendo um príncipe quando frequentava o “fute” em busca do amor. Aliás, sua cotação no mercado feminino era estouro na bolsa.
Mas o que marcou, em minha opinião, na personalidade de Fiico, foi seu perfil heróico da salvação. Explico melhor: Fiico foi um herói que defendia os fracos contra os fortes, oferecendo seu corpo como proteção. E também defendia os indefesos contra os covardes agressores. Várias vezes presenciei Fiico protegendo o juiz da turba enfurecida, animalesca, colérica, correndo em bando, para esmagar uma só pessoa, indefesa.
Em toda minha infância, sempre achei uma imperdoável covardia, cinquenta, cem e até duzentas pessoas, invadirem o campo para espancar um pobre coitado que apitou algo que contrariou a torcida. E quando aquele bando de covardes, irracionais, enfurecidos, saltavam a cerca, Fiico colocava o juiz em suas costas e impedia aquele linchamento. Esse comportamento de Fiico já citei centenas de vezes em minhas palestras. A tese que o esporte desperta os mais primitivos instintos no animal homem. E também que o herói surge exatamente no momento que a humanidade falha, salvando os indefesos.
Fiico contribuiu para modelar minha personalidade, demonstrando que a maior nobreza do caráter é ficar ao lado dos fracos, sem temer os fortes e poderosos.
Que os filhos e netos de Fiico saibam que são descendentes de um herói verdadeiro, um homem que enfrentava multidões para proteger a vida de um juiz de futebol que apitou contra seu próprio time. Um herói que sabia separar o juiz que errou de um homem que tem família, sentimento e amor ao próximo.
O caçula homem de Altino/Peta foi o popular NHÔ, também grande e forte jogador de futebol. Nhô não levava desaforo para casa, mas tinha um coração generoso. A coragem pessoal de Nhô era aplaudida na cidade inteira, porque só a usava em defesa pessoal ou de alguém que estava sendo injustiçado. Parece que estou vendo, como se fosse agora, aquela cena covarde de dois soldados, recém chegados a Jales, puxarem nosso bêbado oficial, apelidado de Zé Cabelo, pelo pescoço, como se fosse um animal capturado. Queriam prende-lo, alegando que estava bêbado, promovendo desordem e o trabalho deles era manter a ordem pública.
Zé Cabelo gritava de dor pelos safanões recebidos e gritava inocência, dizendo que não estava bêbado, nem fazendo bagunça. E dizia a pura verdade, porque era um bêbado bem humorado, respeitador, não brigava, era amigo de todo mundo, menos dos novatos que queriam mostrar serviço, porque naquela Jales de 1954, não havia ladrões, drogas e violência. Nhô pediu, educadamente, aos dois soldados que soltassem Zé Cabelo, que ele o levaria para casa, sem problemas. A multidão presente aplaudiu a interferência de Nhô, sinalizando aos repressores que Zé Cabelo fazia parte da cidade e era querido pela população.
Um dos soldados disse a Nhô: “- Vá se esquivando! Os longos e pesados braços de Nhô, sob os aplausos da multidão, arrancaram Zé Cabelo das mãos dos soldados, As pessoas presentes viram no grandalhão Nhô um mocinho dos filmes de faroeste, salvando uma pessoa indefesa das mãos de um xerife cruel. Uma cena, também chapliniana, de moral ao vagabundo, contra a ditadura das máquinas e do sistema.
O popular e agitado Zico foi diferente dos irmãos. Nunca teve perfil de herói, mas era dotado de um carisma pessoal que nenhum irmão teve. Tinha intensa vida social. Sua esposa, Benta, foi à heroína da família. Amou Zico e todas suas andanças, criando filhos do bem, sendo um exemplo de mulher. Zico foi o mais querido e popular filho de “Seo” Altino e Dona Peta. Seu bom humor era contagiante. Ninguém conseguia brigar com ele.
A única vez que alguém ficou muito nervoso com Zico, segundo a bem humorada história contada por Tijolo e confirmada por outras pessoas que presenciaram a cena, foi num jogo de cartas. Zico estava jogando com Seu Zuri Elias, pai de Jamil, Abdala, Jibrim e avô de Jarbas Zuri, meu grande amigo.
Suspeitando que Zico estivesse com alguma carta escondida, o velho Zuri Elias começou tirar um facão da cintura, lembrando uma adaga árabe das mil e uma noites. O facão era tão grande que nunca acabava de sair da cintura de Seu Zuri. Vendo a hipótese de uma tragédia, tal o tamanho do facão do velho Zuri, Zico saiu em rápida correria, pulando uma janela sem colocar a mão no batente. E o velho foi até a janela, olhou para os lados e nada de ver Zico escondido no corredor. Virou para “Tijolo” e falou encabulado: “- Zico saiu voando ?
Lembro também da “Fia”, a caçula das mulheres, passeando no “fute”, sempre cercada de amigas, de bem com a vida.
A família de “Seo” Altino e Dona Peta cresceu e se multiplicou, para o bem de Jales. Sei que muitos descendentes dessa maravilhosa família ainda moram em Jales. Tenham orgulho de saber que vocês têm raízes. Vocês vieram de gente que foi muito importante na história de Jales.
Queria que toda família de “Seo” Altino e Dona Peta sentisse o mesmo que senti no ano passado, quando viajava pela Rio - Bahia, a caminho de Cruz das Almas, no recôncavo baiano, onde mora minha filha Roberta. Estava escurecendo e vi uma placa sinalizando Jequié a 10 quilômetros. Pernoitei em Jequié, vivendo a emoção de conhecer a cidade onde nasceu Chico do Altino e talvez outros irmãos. Da janela do Hotel, em andar alto, fiquei olhando a cidade! Deu uma vontade imensa de gritar:
“Atenção Jequié ! Saiu daqui uma família que rasgou o sudoeste baiano, Minas Gerais inteirinha e ajudou construir uma cidade paulista quase na divisa de Mato Grosso do Sul.
Vocês conheceram Seu Altino e Dona Peta ?
Foram eles que deixaram Jequié para serem eternos na minha Jales!

Roberto Gonçalves
(Cientista Político, roberto.Motivacao@gmail.com)
in Jornal de Jales

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