Professor Rossini Tavares de Lima
Conferência realizada em 11/9/1963
Escrevi no estudo sobre Amadeu Amaral, incluído no meu Abecê do Folclore, já em terceira edição:
"Ontem como hoje, poucos intelectuais e artistas têm se voltado para o folclore do Estado de São Paulo. De um modo geral, para eles, este só subsiste no Nordeste, e especialmente na Bahia e em Pernambuco, como se folclore fosse privilégio de alguns grupos culturais deste ou daquele país.
"Há anos atrás, quando vivia Amadeu Amaral, entretanto, a situação era pior, tanto que o próprio escritor e folclorista chegou a negar a existência de um folclore paulista. Mas, depois, ele mesmo escreveu: 'Há quem acredite que São Paulo seja terra completamente sáfara em matéria de tradições populares... Não é. O que se dá é apenas que São Paulo é uma terra, onde as pessoas cultas andam absorvidas pelas seduções e pelas imposições da vida ativa, e que o paulista, gente famosa pelo seu intratável bairrismo todo verbal, ou verboso, é na verdade, o indígena brasileiro que menos ama e acarinha o seu torrão'."
Dizia, então, Amadeu Amaral, que por aqui o assunto "não interessa a ninguém e as coisas do folclore passam por meras caceteações contumazes de quem não tem mais que fazer". No entanto, justificava: isso não prova que, em São Paulo, deixem de existir belos e grossos veios de tradições, complexos, variados, irisados do pensamento e da alma de muitas gerações, carregados de tributos de diversa proveniência e incorporados, com o correr do tempo, às feições de uma mentalidade coletiva relativamente avançada.
Os belos e grossos veios existem, declarava Amadeu Amaral, mas ninguém os estuda. "Só ultimamente, afirmava Amaral, apareceram algumas contribuições, muito valiosas, mas indiretas, através de artigos e contos de Cornélio Pires, Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira, Leoncio de Oliveira, assim como por meio de versos do mesmo Cornélio e Paulo Setubal, Alberto Faria, em Campinas, colheu e estudou... preciosos materiais destacados".
O campo inexplorado, porém, era bastante extenso. E ele ajuntava: "Há pouco mais de um ano, tendo-me resolvido a entrar por esta seara, pude, com auxílio gentil de alguns amigos formar um arquivo de muitas centenas de quadrinhas soltas e uma coleção de composições poéticas de outros gêneros, sem falar nas mais espécies de produtos do saber popular. Esse resultado, para mim de todo inesperado, foi-me a revelação surpreendente de um manancial bastante rico, não só em abundância, como ainda em vida e variedade".
Por isso, Amadeu Amaral sugeriu que se fizesse um levantamento folclórico, em São Paulo, prescrevendo: "Uma primeira contribuição farta, regular e verídica, sobre as lendas e contos; outra, sobre o cancioneiro (letra, música e parte descritiva); outra, sobre as artes decorativas populares, documentadas pelos artefatos usuais (cerâmica, rendas e bordados, objetos de adorno caseiro e pessoal etc.); outra, ainda, sobre a casa e indumentária - esta, como a precedente, ilustrada com fotografias ou desenhos em profusão...".
Este levantamento, não apenas de fatos folclóricos, mas também de material bibliográfico, temos feito, obedecendo à sugestão de Amadeu Amaral, e de acordo com as nossas possibilidades econômicas, nem sempre condizentes com o interesse e entusiasmo, desde 1945, quando fundamos, com os nossos alunos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, o Centro de Pesquisas Folclóricas "Mário de Andrade", e posteriormente, como secretário, com funções de presidente, da Comissão Paulista de Folclore do IBECC, e agora como um dos fundadores e membro do grupo diretivo da Associação Brasileira de Folclore, que mantém o Museu de Artes e Técnicas Populares, no Parque do Ibirapuera, o maior acervo folclórico do Brasil, e também como fundador e orientador da página de Folclore de A Gazeta.
Em conseqüência, hoje já podemos discorrer sobre o folclore de São Paulo, o qual em seqüência abordaremos, sinteticamente, em alguns aspectos da sua cultura material e espiritual, a fim de não apenas oferecermos ao público presente algumas noções, por vezes ignoradas do nosso folclore, como também do campo de ação da ciência sócio-antropológica, a que o arqueólogo inglês William John Thoms, num 22 de agosto de 1846, sugeriu ao mundo que se chamasse "Folk-Lore".
Nós e os companheiros da Comissão Paulista de Folclore e da Associação Brasileira de Folclore já não merecemos a crítica que Amadeu Amaral dirigiu aos co-estaduanos, no passado: O paulista é o indígena brasileiro que menos acarinha o seu torrão.
Caiapó de São José do Rio Pardo, um dos mais importantes grupos de Caiapó ou Bugrada do Estado de São Paulo. Documento do Arquivo do Museu de Artes e Técnicas Populares (Folclore), da Associação Brasileira de Folclore, 1969.
Imagem publicada com o texto, na página 63.
Cultura material espontânea
Habitação - A mais comum na zona rural paulista é construída nas proximidades das aguadas limpas. O material é o pau-a-pique, ripas ou varas entrecruzadas, amarradas com cipós, e barreadas a mão ou a sopapo. A cobertura é feita de palha, folha de palmeiras e também de sapé, nas zonas de terras mais devastadas.
A divisão é simples: sala de entrada, quarto e cozinha. Nesta, há um fogão de barro, onde, às vezes, apenas a chapa de ferro é comprada. À noite, a iluminação é obtida com lamparinas ou candeeiros, cujas chamas são alimentadas com azeite de mamona ou mesmo querosene.
Acessórios da habitação - São as esteiras de tábua ou piri, as camas de vara ou tábua, redes de fio de algodão ou cipó imbé para as crianças de peito, cadeiras de tábua trançada, tripeças ou tamboretes e mesmo troncos de árvore que servem de assento. Estaqueiras toscas ou simples forquilhas esgalhadas e penduradas rentes à parede. Há ainda a mesa tosca e os candeeiros, lampiões ou lamparinas.
Utensílios caseiros - Acham-se, entre estes, as panelas de barro, pedra ou ferro; pratos de lata, cuias de cabaça ou de coco, para comer ou beber água; colheres e conchas de pau, cestos de palha de milho, cipó, taquara, capiá, peneiras e abanos de lascas de taquara, moringas e potes de barro, pilões, gamelas, baú, canastra. Atrás da porta, encontram-se a enxada, machado, foice e nas estaqueiras, o laço, cabresto, corote, a viola.
Indumentária - Lembre-se a roupa do tropeiro paulista, heróica figura de nossa história, que já vai se esfumando no passado: sobre a indumentária comum, usava o pala ou manta de lã listrada e até de seda, e às vezes, para se abrigar da intempérie, cobria-se com o ponche, capa com abertura no centro, por onde enfiava a cabeça.
Normalmente, ao pescoço trazia um lenço de seda creme ou preta, com as pontas passadas por um anel de chifre ou um coquinho brunido e chapeado a ouro. Calçava botinas ou botas de meio cano, nas quais se adaptavam as esporas, muitas vezes de roseta grande: chilenas. Na cintura, levava uma faca aparelhada, e na cabeça, um chapéu leve de feltro, com a aba, no geral, batida na testa, e barbela frouxa.
Armas de proteção individual - As mais rudimentares são os cacetes ou porretes, feitos de piúva, piuvinha ou ipê do brejo; perobinha, alecrim, brejaúva, guatambu. Recorde-se que em São Paulo, outrora, piuvada era sinônimo de cacetada. Com fins idênticos, também se usavam os cabos de relho feitos das mesmas madeiras e em cuja extremidade oposta ao relho apareciam desenhos esculpidos, em belos exemplos do sentido estético de nossa gente.
Outras armas eram o facão enterçado do tipo sorocabano, porque tinha Sorocaba como seu principal centro produtor, onde havia maior número de fabriqueiros de facões, e as facas aparelhadas, franqueiras porque oriundas da cidade d Franca, que se caracterizavam pela grande dimensão das ponteiras da bainha, a evocar a forma do corpo de uma viola. A garrucha mais usual era a Laporte.
Alimentação - Na sua dieta alimentar, aparecem ou apareciam, conta Jamile Japur no recente livro Cozinha Tradicional Paulista, ao lado do feijão com couve, angu, torresmo, suã com arroz, virado de couve, viradinho de milho verde, cuzcuz de lambaris, quibebe, sopa e cambuquira, as içás ou tanajuras. Éramos considerados e chamados de comedores de içá, que não é outra coisa que a fêmea da formiga saúva, a qual, na forma alada, realiza grande revoada de setembro a dezembro.
Herança do índio, o abdômen da içá era comido, depois de torrado como o amendoim, ou senão na forma de paçoca, com farinha de mandioca ou de milho. Há mesmo receita do prato no Cozinheiro Nacional, editado por H. Garnier, no século passado (N.E.: século XIX), e hoje é alimento enlatado nos Estados Unidos. A firma Reese Finer Foods, de Chicago, produz esta formiga frita em óleo comestível e recoberta de chocolate.
O companheiro Karol Lenko, da Comissão Paulista de Folclore, para comprovar o fato, publicou foto da lata em trabalho divulgado pela página de Folclore de A Gazeta, sob o título: "A Içá, um petisco tradicional". Diante disso, o que diria o estudante Júlio Amado de Castro, quando nos criticou como comedores de içá e cambuquira, segundo relato de Couto de Magalhães em Viagem ao Araguaia!
Artesanato - Além do artesanato de potes, panelas e alguidares, ainda observado nas regiões de Iguape, São Sebastião, no litoral; Apiaí, Cunha, Jambeiro, Pindamonhangaba, no interior; das belas colchas que se fazem em Franca nos teares de pedal; de peças de couro e chifre de várias partes; da cestaria e das gaiolas de taquarinhas; queremos destacar o relacionado à confecção de redes de balanço ou de balançar, com fio de algodão, que até em nossos dias subsiste em Sorocaba.
Não faz muito, realizamos um levantamento dos teares de parede existentes naquela cidade paulista, na sua forma de quadrilátero e feitos de cabreúva, com suas outras peças: bruche, abrideira, batedeira, tempereira. Nesses teares, confeccionam-se dois tipos de redes: a batida e a lavrada. A batida possui um trançado simples e a lavrada apresenta desenhos em alto e baixo relevo, com motivos de flores: cravo, cravina, rosa; e outros motivos: pilão, balanças, ondas do mar, caracol etc.
Sabe-se que já no princípio do século passado (N.E.: século XIX) estas famosas redes de Sorocaba eram transportadas em bruacas, colocadas em lombos de burros, para o Paraná e Rio Grande do Sul. E Saint-Hilaire, na segunda visita que fez a São Paulo, considerou este artesanato um dos característicos mais notáveis da gente paulista.
Arte popular - No Estado de São Paulo, sobressai-se, nesse setor, em primeiro lugar, a maravilhosa arte das figureiras do Vale do Paraíba: Taubaté, Caçapava, São José dos Campos, Pindamonhangaba. Mas, não é dela que iremos falar, pois desejamos é fazer menção a três artistas folclóricas: um pintor, Tio Quincas; e dois escultores: Dito "Seu Nêgo" e dona Bertolina.
Tio Quincas nasceu em Patrocínio Paulista, em 1885, e pinta, segundo diz, para esquecer as saudades da esposa. Com lápis-cera, realiza uma obra, cuja característica é o aspecto descritivo. O papel é sempre pequeno para ele, comenta o artista e folclorista Oswaldo de Andrade Filho, diretor do Museu de Artes e Técnicas Populares, da Associação Brasileira de Folclore.
Conta uma história e a faz sem a menor preocupação ou preconceito contra o anedotismo. Assim, por exemplo, pinta, com todos os pormenores, inclusive com indicações escritas, um cortejo de casamento na zona rural de seus tempos de moço. Eis as indicações do seu quadro A Grande Transformação de Nossa Vida Querida, uma recordação de 1910: "O carretão com uma tora de cedro para levar no engenho de serra; nesse tempo um carretão gastava 1 a 2 dias para levar uma tora no engenho de erra, agora um caminhão pega de 5 a 6 toras, empilhadas umas por cima das outras, e em 2 horas está no lugar; agora temos facilidade para tudo"...
Dito "Seu Nêgo" era um preto que viveu em Araraquara, tendo falecido há uns dois anos e pouco (N.E.: portando, por volta de 1961), e que ao lado de sua função de pintor de parede dedicava-se à escultura de bonecos, com trapo, massa e arame. Tinha preferência pela figura humana, e nos legou peças realmente notáveis na expressão do rosto e gestos, mas também encontra-se agora em poder do compositor Theodoro Nogueira, que, com desmedido carinho, andou de seca e meca à procura de exemplares, já tidos por desaparecidos.
Afinal, recordamos dona Bertolina de Itapetininga, cuja constante artística se projeta na escultura de cabeças, sempre diferentes, mas somente cabeças. Começou a esculpir quando deixou de trabalhar na enxada, em Apiaí, onde nasceu e criou-se. E suas peças são feitas de barro e enxugadas ao sol. Cássio M. Boy, também da Comissão Paulista de Folclore, escreveu sobre a arte de Bertolina na página de Folclore de A Gazeta, recentemente.
Bandeira do Divino - Itu.
Imagem publicada com o texto, na página 69
Cultura não material, imaterial ou espiritual
Festas - As festas de maior incidência em nosso Estado são as do Divino, São João, São Benedito, Nossa Senhora do Rosário. Entretanto, nos parecem particularmente nossas, festas como a da Carpição de Nossa Senhora, em Guarulhos; São Jorge, em Tatuí; e Santa Cruz, da Aldeia de Carapicuíba, pelo menos na expressão, muito característica.
Carpição consiste no ato de apanhar um pouco de terra ao largo da capela de Nossa Senhora, no bairro de Bom Sucesso, em Guarulhos, sempre na primeira segunda-feira de agosto, e a seguir depositá-la em um lenço, encostando este na parte do corpo que estiver afetada por alguma moléstia. Em seqüência, o doente devoto caminha uns cem metros até um sítio prefixado, onde a terra é lançada fora.
Para a Carpição forma-se fila enorme de crentes, incluindo animais com os seus donos, apresentando em algum lugar do corpo, encostado, o milagroso punhado de terra, embrulhado no lenço. Na voz do povo e dos padres de Bom Sucesso, o nome da festa, que atrai grande número de romeiros, mais cerimônia mágico-religiosa do que festa mesmo, advém do costume primitivo de sugerir aos devotos que carpissem o largo da capela, o que era tido como ato de penitência e mortificação.
Eis, agora, como exemplo ilustrativo, o programa da festa de São Jorge, que teve lugar em Tatuí, no Sul do Estado, a 15 de agosto deste ano: "Ao meio dia, concentração dos cavaleiros vindos da cidade e dos bairros, no largo de Santa Cruz, no alto da cidade. Às 14 horas, início do cortejo, levando-se a imagem de São Jorge em um carro, puxado por belos corcéis. O encerramento terá lugar na praça da Matriz, onde será data a bênção, havendo um sermão nessa ocasião. Nesse mesmo local será sorteada uma bela potranca libuna (acinzentada), meio sangue (santamista) a quem houver contribuído com a importância de 100 cruzeiros para a festa. Em seguida, serão nomeados os novos festeiros para 1964, dispersando-se os componentes do cortejo.
"Pede-se aos Inspetores de Quarteirão ou aos Encarregados dos Bairros, que tragam uma faixa indicando o bairro a que pertence o grupo de cavaleiros. Os Festeiros e o Pároco pedem a todos os participantes desta Festa o máximo respeito e ordem, visto não se tratar de um simples passeio a cavalo pela cidade, mas uma procissão religiosa em louvor a um santo".
O programa apresenta o nome de cinco festeiros e o visto do pároco. Não assistimos a esta festa, mas fomos informados que contou com a participação de mais de 900 cavaleiros. Conforme a tradição, porém, este ano ela não foi abrilhantada pela banda de música, porque os músicos não quiseram acompanhar a cavalgada religiosa em louvor de São Jorge, sentados em carroção de tração animal, que lhes havia sido preparado pelos festeiros. Eles queriam mesmo era um caminhão...
A festa de Santa Cruz da Aldeia de Carapicuíba, realizada nos dias 2, 3 e 4 de maio, num maravilhoso simbolismo indio-jesuítico, tem seu principal ponto de atração na dança religiosa de Santa Cruz, à qual nos referimos no tópico consagrado a danças.
Música - Como os nordestinos, nós paulistas também possuímos um romance de animal, que integra o ciclo do boi, um dos mais importantes do romanceiro de criação nacional. Trata-se do romance do Boizinho, cuja primeira variante parece haver sido recolhida por Amadeu Amaral, em São Sebastião da Gama, em 1921. Aparecia, então, com o nome de moda, designação genérica das nossas cantigas narrativas, entoadas em terças, ao som da viola. E ao comentá-lo, conta o autor paulista que o poeta mineiro Pedro Saturnino nele já se inspirara, para escrever um dos poemas do livro Grupiaras.
Posteriormente, a partir de 1951, recolhemos cinco variantes em regiões velhas e São Paulo, verificando que sua música é exemplo expressivo da chamada área da moda-de-viola, integrada pelo nosso Estado, Sul de Minas, Mato Grosso e Goiás, e que nada tem a ver com os romances nordestinos, como julgava Amadeu Amaral. O mais completo documento registramos com o nome de O Boi Amarelinho, em São Bernardo do Campo, em 1956, e o informante, considerando-o muito antigo, declarou que era cantado por um tal Chico Boiadeiro.
Eis o texto literário da versão:
Eu sou aquele boizinho
Que nasceu no mês de maio,
Desde o dia que nasci
Estou sofrendo no trabaio.
Fizero logo o batismo
Lá nas marge do riozinho,
Por causa da minha cor
Eu fui chamado Amarelinho.
Meu pai era um boi turuna,
Que nasceu num sapezá
Seu nome era Barbatão,
Cô sobrenome de Marruá.
Quano eu taxa de ano e meio
Já fizero amansação,
Em veis de amansá de carro
Amansaro de carretão.
Carrêro que me guiava
Era um mulato pimpão,
Me dava cô pé da vara
E chuchava cô ferrão.
Me dava cô pé da vara
Só fazendo judiação,
Eu preguei uma chilfrada
Que varô no coração
Ai meu sinhô já disse,
Eu vô mandá este boi pró corte,
Não trabaia no meu carro
Boi que já deve uma morte.
Dois anos fui bezerro,
Dois anos fui garrote,
No fim dos quarto ano
Estô sofrendo a dor da morte.
Do alto daquele morro
Avistei dois cavalêro,
Tinha um laço na garupa
E dois cachorros perdigueiro.
Um era o senhor patrão,
Que vinha me visitá,
Outro era o carniceiro
Que vinha me negociá.
Adeus campo da varginha,
Terreno dos ananais,
O zóio que me vê hoje
Amanhã não me vê mais.
Eu cheguei no matadô,
Não encontrava a saída,
O miór jeito que tem
É entregar a minha vida.
O marvado carnicêro
Correu afiá o facão,
Para dar uma facada
Direito no coração.
Botei joelho em terra
Para vê o sangue corrê,
O marvado com a canea
Aparou o sangue prá bebê.
Eu fiz uma promessa
De quem meu côro tirá,
No mundo dá muita volta
E sem camisa há de ficá.
Dança - Parece que São Paulo é a única região do Brasil onde existe a Dança de Santa Cruz, observada em regiões circunvizinhas da Capital: Itaquaquecetuba, Embu e Aldeia de Carapicuíba. Tradição índio-jesuítica, é realizada nas noites de 2, 3 e 4 de maio, com maior solenidade na referida Aldeia, que foi mesmo reduto indígena.
Dançam-na à frente da capela de Santa Catarina, padroeira do lugar, e depois, do Cruzeiro, casa do festeiro e, a seguir, diante de todas as outras cruzes colocadas junto à porta das casas dos demais moradores.
Em cada um dos locais mencionados, faz-se a saudação, dança-se a roda e termina-se com a despedida, três partes em que se divide a Dança de Santa Cruz ou Sarabaquá, no dizer dos habitantes da Aldeia, nome do tempo dos índios.
O instrumental acompanhante é constituído de duas violas, reco-reco, adufe, puitá. Para a saudação, os instrumentistas, dirigidos pelo violeiro-chefe e seu segundo, colocam-se em fila, com a frente voltada para a cruz, formando o povo que vai dançar, por diversão e promessa, atrás deles. Assim dispostos, os violeiros cantam um dístico de quadrinha, encerrando-o com um "ói" prolongado, no que são acompanhados por todos os participantes. A seguir, ao toque dos instrumentos e bater de palmas, todos se afastam uns seis passos, e depois, da mesma maneira, seis passos para a frente. Aí, os violeiros voltam a cantar na frente da cruz, completando a quadrinha e entoando, ao final, um "ói" muito agudo, com todo o povo. Eis algumas quadras de saudação:
Caiu um cravo...
Nos braços da Santa Cruz,
Do cravo nasceu a Virgem
Da Virgem nasceu Jesus.
Ó Cruz Bendita,
Toda coberta de flor,
Jesus Cristo verdadeiro
Padeceu por nosso amor.
Encerrada a saudação, o violeiro-chefe, tendo atrás o segundo, forma a roda, a começar com os integrantes da primeira fila. E quando esta se achar organizada, deverá apresentar no interior uma outra roda de mulheres, as quais ficam lado a lado dos cavalheiros, aos pares. No movimento das rodas, o violeiro, um e outro dançador cantam quadrinhas divididas em dísticos:
Penteai vosso cabelo
Com pentinho de marfim,
Enfeitai vossa beleza
Com raminhos de alecrim
Namorei dona Maria,
Namorei que ninguém veja,
Acabada essa vortinha
Queremos beber cerveja
A despedida é semelhante à saudação, com a diferença que as quadrinhas cantadas principiam com o verso "Vamos dar a despedida". Na última noite, depois da Sarabaqué se desenvolver como nas anteriores, há a despedida geral da igreja e do Cruzeiro. E para terminar, dança-se Zagaia. Forma-se a roda descrita, com as damas por dentro e os cavalheiros por fora, a qual se movimenta também de modo idêntico. Mas, em dado momento, o violeiro-chefe grita: "Zagaia, vem zagaia!", e todos os dançadores dão meia volta, recomeçando a dançar em sentido contrário.
Grupo religioso - A Quaresma é o tempo da recomenda, recomendação ou encomenda das almas, como a designam nas zonas rurais do Estado de São Paulo. Geralmente, constitui um grupo religioso, com seus integrantes por vezes amortalhados de branco ou com simples toalha branca na cabeça, que sai pelas ruas e estradas, noite fechada, a cantar e a sugerir orações às almas que vagam no espaço, padecem no purgatório e mesmo no inferno.
Este fenômeno folclórico, que na estrutura e função conhecidas parece ser comum apenas à área cultural luso-brasileira, procede de práticas religiosas medievais, extensivas a todo o mundo cristão. A mais antiga menção, em Portugal, é de 1515, e deve-se a Melo Morais Filho a melhor descrição da "encomendação das almas", como ele descreve, em nosso país. A partir de 1946, investigamos o assunto, em São Paulo, e encontramos o grupo de Pirangi, Itaberá, Rio Branco, São Manuel, Tietê, Santa Rosa do Viterbo, Franca e outras localidades.
Em Pirangi, o grupo apresentava seus integrantes enrolados em lençol e a tocar matraca. Quando chegava à frente de uma casa, pedia orações às almas dos que morreram afogados, sufocados, linchados, às almas do purgatório e às de todos os que não morreram de morte natural.
Em São Manuel, além da matraca aparecia também o berra-boi, feito de tabuinha com barbante amarrado na extremidade, que rodada no ar produz forte zumbido. E em Itaberá e Rio Branco, a recomenda se fazia não apenas à frente das casas, mas também das cruzes de beira de estrada e capelas. Na zona rural de Santa Rosa do Viterbo, participam do ato homens, mulheres e até crianças. As andanças têm lugar a partir das nove da noite, às segundas, quartas e sextas-feiras da Quaresma. Os instrumentos são a matraca e a sacarraia, roda de madeira denteada, sobre a qual passava uma lâmina do mesmo material. Outrora, contaram-nos, usava-se também o berra-boi. Hoje, entretanto, foi abolido, porque mesmo depois de passada a Quaresma, fica-se a ouvir o seu sibilar noite a dentro, afirmam atemorizados os recomendadores...
Folguedo popular - Usualmente, os folcloristas empregam a expressão "folguedo popular" para designar não apenas as danças dramáticas, mas também os cortejos dançados de rua e torneios equestres, com representação, a exemplo das cavalhadas de mouros e cristãos.
Possuímos no folclore paulista um folguedo popular de características muito nossas: o Caiapó. É um folguedo-cortejo, no qual os dançadores se apresentam vestidos à imitação de índios, e talvez mesmo de selvagens da África. Sua mais antiga referência se acha no registro das festas do nascimento da Princesa da Beira, realizadas, na Capital, em 1793 e 1794. E o centro irradiador, pela documentação existente, deve haver sido São Paulo de Piratininga, onde se exibia já no século XVIII.
Isto, aliás, é possível explicar pelo nome, o qual advém dos índios Kaiapó, do grupo Gê, cujo ramo meridional, na primeira metade do século passado (N.E.: século XIX), ainda se estendia pelo Rio Parnaíba e alto Paraná, chegando às proximidades da foz do Tietê. Estes índios, que habitaram o Oeste de Minas Gerais e o Noroeste de São Paulo, causaram, nos séculos XVII e XVIII, grandes transtornos aos bandeirantes. Foi mesmo feroz e longa a luta dos bandeirantes, lembra Mário de Andrade, para dizimar os índios Kaiapó, que impediam e destruíam o trabalho de mineração entre a vila de Goiás e as Minas Gerais. É possível, portanto, imaginar que o nome dado ao folguedo de mais velha documentação paulistana tenha se motivado na tradição bandeirista de luta contra os referidos indígenas. Apenas o nome, porém, porque os traços índios que permaneceram no Caiapó folguedo popular são especialmente Tupi-Guarani.
Quem primeiro descreveu o folguedo com maiores pormenores foi João Vampré, o qual se referiu ao Caiapó da capital paulista e do interior do Estado. A seguir, em 1945 e 1949, investigamos o Caiapó de Piracaia, que como o mencionado por Vampré compreendia um grupo de dançadores vestidos de índios ou melhor dizendo mesmo, à imitação de índios.
Em 1955, juntamente com o professor Alfredo João Rabaçal, da Comissão Paulista de Folclore, estudamos o grupo de São José do Rio Pardo, com os seus saiotes e corpetes feitos de capim barba-de-bode. Ainda em nosso Estado, há o grupo de Mairiporã, descoberto por Américo Pellegrini Filho, da referida Comissão também; e em Minas Gerais, por influência paulista, há Caiapó em Poços de Caldas, Cabo Verde, e já existiu em Muzembinho e Oliveira. Trinta a quarenta anos atrás, o Caiapó, também chamado Bugrada, era folguedo de larga incidência no Estado de São Paulo.
Literatura - Da literatura folclórica paulista, vamos recordar os enterros e ospasquins. Enterros são formas que relatam acontecimentos relacionados a tesouros enterrados: dinheiro, jóias, ouro. Até há pouco, julgava-se que relato folclórico com essa designação fosse coisa típica do Rio Grande do Sul. Porém, pesquisas recentes vieram esclarecer que enterro, na modalidade de literatura folclórica, é também tradição do Sul de São Paulo, que presumimos haver sido levada daqui para os pagos gaúchos.
Vejamos um exemplo de enterro, recolhido por nós, em Itapetininga: chama-se O ouro do fazendeiro. E contam: "Na região do Morro Alto, há muitos anos passados, um fazendeiro possuía ouro e não dispondo de lugar seguro para guardá-lo, resolveu enterrá-lo. Mandou, então, que escravos colocassem o tesouro em um carro puxado por dois bois e, acompanhados por dois cães de guarda, atravessassem uma grande mata, para chegar a um local onde existia um alambique. Aí, todo o ouro foi descarregado e fechado em um caixão, o qual depois acabou sendo enterrado com todo cuidado. Terminado o serviço, o fazendeiro tomou da vara de ferrão, furou os olhos dos escravos e matou-os. A seguir, fez a mesma coisa com os dois cães e os dois bois.
"Durante muito tempo, o fazendeiro viveu tranquilo, até que veio a falecer, sem tempo de revelar o segredo do enterro. Mas, depois da morte, começou a aparecer a um amigo, pedindo-lhe que fosse desenterrar o ouro, para que pudesse ficar em paz. O amigo, para atendê-lo, e também para gozar do sossego, foi ao sítio mencionado pela assombração do fazendeiro, encontrando nas proximidades dois bois raivosos e dois cães que não paravam de ladrar. E sobre o lugar do enterro, dois negros com os olhos dependurados, que pediam desesperadamente que alguém viesse recolocá-los nas órbitas. O quadro era impressionante e o amigo não teve coragem de enfrentá-lo. Dizem, por isso, que esse enterro ainda existe no mesmo sítio, mas ninguém mais quis saber de ir procurá-lo, de medo das assombrações".
Pasquim - Outra forma de literatura folclórica é justamente o Pasquim ou Pasquinho, como ouvimos dizer. Sabe-se que a palavra procede de Pasquinho, estátua mutilada da velha Roma, que se encontrava em Parlone, um dos lugares mais populares da cidade, e na qual era costume inscrever versos, de início de caráter sério e depois, satírico. Com o passar do tempo, designou as produções populares, fixadas em lugar público, interessantes ou não, verdadeiros libelos, em prosa ou verso, contra pessoas ou ocorrências, ou pelo menos de comentário crítico a eles.
No geral, este é o espírito dos pasquins, que a equipe da Comissão Paulista de Folclore encontrou na região de Ilhabela e São Sebastião, e que parecem ser antiga usança ali.
Apresentam-se sob uma forma lítero-musical, mais literária do que musical mesmo, que se difunde de maneira predominantemente escrita, a lápis, em folhas de papel de várias procedências, inclusive papel de embrulho. Seu objetivo é a crítica social e, especialmente, individual, manifestada por ocasião de acontecimentos que impressionaram o meio popular: alguns documentos, porém, podem apresentar um conteúdo lírico ou simplesmente narrativo e nesse aspecto a forma se confunde, então, com as modas-de-viola.
Se é verdade que no início de sua elaboração o pasquim possui um autor individual, logo ele passa a receber a colaboração de outros e só se completa quando reflete com autenticidade a opinião do meio popular a respeito do tema que aborda. E quando começa a circular, o nome do seu primeiro autor desaparece depressa, mesmo porque, em virtude de possuir na maioria das vezes características de crítica, não seria de bom alvitre que este o acompanhasse. Esclareça-se, contudo, que nos documentos de menor sentido crítico, o nome do autor primeiro pode aparecer no pasquim, até assinado.
Em fins de 1959 e começo de 1960, a equipe da Comissão Paulista de Folclore recolheu na região de Ilhabela e São Sebastião quinze exemplos dessa forma, predominando o assunto relacionado ao naufrágio do navio espanhol Concar. Este navio, para se livrar do contrabando que possuía a bordo, face à fiscalização do porto de Santos, acabou por encalhar e posteriormente submergir no costão de Ilhabela, em novembro de 1959. Esta ocorrência teve grande repercussão entre as coletividades populares da região, principalmente ao meio de pescadores, pois lhes acenou com a possibilidade de buscar no fundo do oceano muitas utilidades que faziam parte da carga do Concar, por exemplo, latas de azeite estrangeiro, as quais de fácil vendagem contribuíram para minorar a aflitiva situação econômica em que vivem.
Julgamos que ali se encontram algumas das populações mais subdesenvolvidas do nosso País. E neste documento de pasquim, elas, pela escrita de Gringo e seus colegas, contam a história do Concar:
Nós não sabemos porque...
E nem queremos saber...
Como é que o tal de Concar
Lá na Ilha foi bater.
Sabemos assim por alto,
Que devido à cerração,
O navio perdeu a rota
Não vendo iluminação!
Outros contam diferente
Variam de quando em quando,
E chegam mesmo a jurar:
A causa foi contrabando!
A carga manifestada,
- Cortiça, óleo, azeitona.
Mas o navio afundando
- Relógios vieram à tona!
O caiçara amarelo
Que de bobo não tem nada,
Foi juntando o que podia
Sempre na velha mancada.
Na cidade a turma toda
Só sabe falar em azeite,
E nem ao próprio vigário
Não há mais quem o respeite...
Tem gente se dando bem
Com idas atrás da Ilha
Tem gente da tal "aduana"
Em casa, fazendo pilha.
Um de farda falou alto,
Se me pegarem não corro,
Pois escondi o meu óleo
Lá em casa, mas no forro!
O outro foi mais sabido
E teve bem mais trabalho,
Escondeu quinhentas latas
Bem em baixo do assoalho.
Dizem que a safadeza
Demora, mas nunca tarda,
A "duana" já deteve
Até companheiro de farda.
Este documento, do qual mostramos alguns trechos, possui dezessete quadras; há, porém, outros em sextilhas, oitavas e um com oitenta estrofes.
Para fechar esta conferência sobre folclore paulista e homenageando a presidente do Instituto Histórico e Geográfico Guarujá-Bertioga, dona Lucia Piza Figueira de Melo Falkenberg, a quem dedico a conferência, quero recordar a figura de seu tio-avô, José Gabriel de Toledo Piza, José Piza como é mais conhecido, escritor e principalmente teatrólogo, nascido em 1871 e falecido em 1910, cujas obras bem revelam sua preocupação, diferente do que afirmou Amadeu Amaral, pela cultura espontânea do paulista.
Parece haver sido mesmo, como assinala um jornal de 1904, profundo conhecedor da roça e do palavreado do caipira nosso. E nesse aspecto, sua principal obra é a que se intitula Contos da Roça, editada, em 1900, pela Casa Andrade Melo & Cia., São Paulo.
Aí, no conto Festa de São João, José Piza faz menção ao levantamento do mastro, à salva de garrucha e ao cateretê, em cujo início Zé Proença cantou estes versos:
Abaixai-vos Serra Negra,
quero ver a Morungaba,
quero ver a moça bonita
passeando em Sorocaba.
A fita do seu chapéu
tem cor de seu vestido,
pelo traje com que anda
mostra um gosto adecidido.
Ai, Aninha!
Por amô ando perdido.
O Muchirão, outro conto de José Piza, registra um muchirão ou mutirão de colheita e um fandango do inteiro, em que há improvisos na forma de desafio, entre Juca e Ritinha. Diz o Juca:
Hai ua moça na terra
que meu coração robô
si quem roba fica preso
qui dirá quem roba amô.
Ritinha indaga:
Responde mecê depressa
não teije cum indireta,
diga o nome dessa moça
si a coisa num é secreta.
E o Juca explica:
Eu não posso falá arto
o nome do meu amo,
pregunta prôs passarinho,
pregunta prá cada flô.
Bibliografia
TAVARES DE LIMA, Rossini - Abecê do Folclore, 3ª edição, Ricordi, São Paulo, 1962.
______ Folguedos Populares do Brasil, 1ª edição, Ricordi, São Paulo, 1963.
_____ Folclore de São Paulo (melodia e ritmo), 2ª edição, Ricordi, São Paulo, 1960.
_____ O Folclore na Obra de Escritores Paulistas. Conselho Estadual de Cultura. Comissão de Literatura. Coleção Ensaio. São Paulo, 1962.
JAPUR, Jamile - Cozinha Tradicional Paulista. Folc-Promoções. São Paulo, 1963.
Coleção da Página de Folclore de A Gazeta, divulgada aos sábados pelo referido jornal paulistano, desde 1958, sob a direção de Rossini Tavares de Lima.
Fonte: NOVO MILÊNIO.
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