sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O CASO DO JOÃOZINHO, EM ITATIBA


Em Itatiba – Joãozinho*

Ministro Mario Guimarães
Muita gente me tem perguntado se, como promotor ou como Juiz, não teriam aparecido na minha longa carreira, alguns casos interessantes, do ramo criminal.
Alguns efetivamente, com aspectos curiosos passaram pelas minhas mãos. 
Citarei o seguinte, ocorrido em Itatiba. 
Era essa uma cidade pacata, povo em regra respeitador da lei. Crimes contra a vida muito poucos. Contra a propriedade ainda mais raros.
Aconteceu, entretanto, que desde o ano de 1918 mais ou menos, até 1924 várias casas comerciais e residenciais haviam sido assaltadas. 
Um assalto de cada vez. Sempre à noite. 
O processo era invariavelmente o mesmo: o ladrão, mediante pua, fazia uma série de furos junto à fechadura, ou em redor dela, abrindo assim um orifício por onde metia a mão e abria a porta. Penetrava na casa e roubava o que podia, tão silenciosamente que jamais alguém o percebeu. 
Dava, porém, preferência às casas comerciais, é claro. 
Tão hábil se mostrou que nunca errou o golpe. Era artista consumado. 
Um só ladrão? Vários? Uma quadrilha? 
Todos conjeturavam as possibilidades. 
Não devia o ladrão ser homem atrasado. O roubo apresentava aspectos de casos de Arsenio Lupin, ou de Sherlock Holmes. A Polícia não tinha pista alguma.
Certa noite, cozinheiras que voltavam de um baile viram uma pessoa à porta da Coletoria Estadual a tentar abri-la.
Uma falou às outras. Notaram que era um preto. Mas o ladrão também as vira. Elas ficaram estáticas de medo. 
E o arrombador, dando saltos como se fora um sapo gigantesco, foi se afastando e fugiu. Mais céleres ainda, elas fugiram apavoradas, em caminho contrário, pensando que fosse alguma alma do outro mundo ou qualquer outra coisa sobrenatural. Porque homem não era. 
Homem não salta como sapo.
E continuou o mistério dos roubos. 
Todo delegado que se sucedia em Itatiba, punha a sua atividade na ânsia de desvendar esse mistério.
Houve um, mais minucioso, que raciocinou: os ladrões devem ser vários. Um homem só não conseguiria realizar com tal perfeição tantos roubos. E se são vários, após o roubo se reunirão provavelmente em algum lugar para repartir o produto. Os ladrões não gostam de deixar essa divisão para mais tarde porque uns não confiam nos outros. 
Onde se reunirão? Naturalmente próximo das casas assaltadas. O melhor lugar é a praça principal, de iluminação deficiente e muitas árvores.
E então, altas horas, o delegado e o ordenança foram para a praça. 
Ele trepou numa árvore, para ocultar-se e o ordenança o mesmo, em outra.
Passaram a noite. Não houve roubos. 
Repetiram a diligência várias vezes. Mas por coincidência em todas as outras noites também não houve assalto algum. Desistiram.
Os assaltos não se realizavam todos os dias. 
Havia às vezes intervalos de dias e até de meses entre um e outro. 
Durante a revolução de 24, apesar de não haver policiamento, e estar a cidade superlotada com pessoas de fora, não ocorreu assalto algum.
Pouco depois, quase por acaso, tudo se esclareceu: só havia um ladrão na cidade – o ordenança do Delegado, o soldado mais antigo e mais considerado do destacamento – o Joãozinho. Delegado que saía recomendava a seu substituto a pessoa do Joãozinho. 
Ele servira sempre, com inteligência, e dedicação à autoridade a quem assistia.
No dia da volta do Governo Estadual ao seu posto, estávamos reunidos na casa do Prefeito, a aguardar notícias, quando foram chegando várias pessoas – entre eles o Joãozinho. 
Foi recebido por uma estrondosa salva de palmas. Fora o único soldado do destacamento que recusara servir aos revolucionários. Ficara oculto durante a revolta, para evitar a prisão, e neste momento se apresentava. 
O ato de sua fidelidade de soldado foi louvado por todos. Até eu, por força do cargo, sóbrio em quaisquer manifestações levantei-me da minha cadeira e dirigi-me, solene, ao Joãozinho: - Joãozinho, você cumpriu o seu dever. Parabéns! 
E apertei-lhe a mão.
Pois o Joãozinho, o soldado perfeito, era o afamado ladrão de Itatiba.
Como se descobriu? 
Cherchez la forno, dizia aquele arguto chefe de Polícia francês. Joãozinho era casado com uma cabocla não feia, e de aspecto revelador de temperamento ardente. O casal não vivia muito bem. Ela se queixava que ele dava mais atenção a brigas de galo do que a ela. Ele... não tive oportunidade de saber se queixava porque não pude ouvi-lo.
Como quer que fosse, um dia, ao que disseram as testemunhas, ele, tomado de ciúmes, lhe aplicou uma tremenda sova. 
A mulher o advertiu: olha, Joãozinho, se você novamente me tocar no corpo, com um tapa que seja, pode ficar certo de que eu vou contar todos os seus roubos à Polícia. 
Ele compreendeu bem o perigo que estava. A sua mulher tinha uma arma poderosa contra ele. Teria de concordar em tudo bem atento que ela fizesse.
Tentou escapar. 
Terminara a revolução em S. Paulo, mas prosseguia a perseguição aos revoltosos em outros Estados do Brasil. 
Alguns batalhões da Polícia paulista estavam operando, juntamente com as forças federais, no Norte. 
Joãozinho pediu reservadamente ao Comando da Força Pública a sua incorporação às tropas combatentes e juntou-se a essas forças, então na Bahia.
A sua mulher ficou em Itatiba, com os filhos. 
Pouco dinheiro, disse ela. Precisava sustentar os filhos, argumentou. 
E foi então oferecer à venda a diversas pessoas, uma cautela de um valioso colar de pérolas, depositado em penhor no Monte de Socorro. 
Ninguém quis o negócio. 
Como poderia a família de um soldado possuir joia de tão alto preço? 
Teve a Polícia conhecimento. 
Foi dada busca na casa de Joãozinho e encontradas máscaras pretas, de meias, alicates, puas, todo um material preciso para um eficaz arrombamento. 
A mulher, que poderia ser cúmplice, foi presa e confessou tudo com pormenores. Explicou o ocorrido com as cozinheiras que Joãozinho, fingindo ser um louco ou um fantasma, com o que afastou as possíveis testemunhas. (Ele não era preto, mas um tipo louro, de olhos azuis.).
Certa vez, tendo assaltado a casa de um senhor residente à rua principal da cidade, quando, pela manha, foram examinar a porta da casa, presente o Joãozinho, como aliás, em todas as diligências, pelo buraco aberto na porta, várias pessoas experimentaram meter a mão. 
Não puderam. 
Tinham mãos grandes e a abertura fora feita para pessoa de mão pequena. 
Ele também experimentou. A sua mão passou perfeitamente. Ele voltou-se rindo para todos. 
Está descoberto o ladrão: Sou eu o ladrão. 
Todos riram, também.
E onde ele aplicava o dinheiro? Não com a mulher, nem com mulheres. Jogava em apostas de brigas de galo. A cada doido a sua mania.
O réu e a mulher foram denunciados. 
Ela foi absolvida. Verificou-se que obedecia, de medo, ao marido. 
Decretei a prisão preventiva do marido e cheguei a pronunciá-lo.
Foi preso na Bahia, onde se achava, mas, em caminho, iludindo a escolta conseguiu fugir para lugar até hoje ignorado.
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*Trecho do livro "Memórias de Portas a Dentro", gentilmente enviado por Laïs Helena Teixeira de Salles Freire (neta do saudoso Ministro) ao Dr. Pintassilgo.

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